Capítulo 3 - Sonhos moldados

51 2 10
                                    

5 de janeiro de 1937...

∞ Scarlett Bones

   Estou caminhando por um corredor que parece o túnel de um trem. Tem goteira e cheiro de mofo. O chão encharcado e com musgo me faz derrapar em alguns momentos. É escuro, mas eu consigo ver, até porque eu sou uma Demônio (a melhor de todos), obviamente que eu conseguiria enxergar a trilha de pétalas à minha frente. Engraçado, não são rosas Scarlet Carson, são lírios... lírios brancos como a neve. Estranho ver tal flor... Será um presságio?

   Ergo o olhar das flores para afrente. Vejo a silhueta de alguém. Uma mulher, de longuíssimos cabelos, que batem nos tornozelos as pontas cortadas em "v". Vou me aproximando em passos despreocupados (até que lerdos). Vejo que são madeixas brancas e ela veste roupas... espera... é... um homem? Ah... Acho que é o Desertor! Vou me aproximando e confirmo ser um homem ao perceber melhor as vestes. Terno negro como os abismos das pupilas de um Murk e uma pose tão introspecta! Chega a ser admirador, Sr. Desertor! Huhu...

   Meu pé chuta uma pedrinha do chão e isso estride um som pelo túnel imundo e solitário, frio como um cemitério. Za'Reon me aquece, ao menos. A lasca rola até os pés dele, mas, mesmo antes de esbarrar em seu calcanhar, já havia se alarmado com o barulho. Vira seu rosto lentamente para mim e vejo seus olhos verdes vibrantes iluminarem até de encontro com os meus vermelhos, escurecidos pelo breu deste lugar. Os meus estão como o sangue que brota na pele... enquanto os dele reluzem como faróis... É encantador! Percebo seu cenho franzir. Virando-se para mim, questiona:

- Quem é você?

   Sua voz é muito bonita. É cadenciada e atípica. Impõe-se como sua assinatura. De qualquer forma, sinto-me obrigada a responder, sem contar:

- Uma líder.

- Não posso te ver direito. Venha mais perto. – Ele espreme os olhos, tentando enxergar.

   Sinto que não devo, afinal, seria meu dever manter-me sigilosa. Dou um passo para trás.

- Não! – Ele estende a palma, querendo que eu não vá. – Por favor... É... É muito solitário aqui!

   Franzo o cenho.

- Não se importa com o que ou quem seja? Quer, somente, se enganar de que não está sozinho?

   Ele relaxa a postura.

- Não é enganação quando, de fato, há mais alguém presente.

   Bufo um riso contido.

- Às vezes, pode-se estar sozinho numa multidão.

   Ele entreabre os lábios, pronto para rebater algo, mas se rende com um sorriso ameno, contudo, tremendamente charmoso:

- É... É verdade.

   Suspiro e nego com a cabeça.

- Nada como a verdadeira solidão. Numa multidão, ainda pode parar um estranho e dizer qualquer coisa que seja, entretanto, quando se está sem ninguém, além de si mesmo, só resta a loucura para não se sentir insuficiente.

   Ele faz uma expressão doída e abaixa a cabeça. Estendo as asas o quanto posso nesse lugar estreito, corto os pulsos, vendo aquele sangue brotar. Escorre quente e morre frio no chão tão congelante quanto. Miro o olhar no Desertor.

- Tire-me daqui... – Digo em voz alta, para a chama dentro de mim. - ...Sem senha desta vez!

   O fogo negro me envolve. Os olhos verdes do Desertor esbugalham e seus lábios tremem.

Quedas ObscurasOnde histórias criam vida. Descubra agora