Capítulo 2 - Solitário

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∞ Desertor

   Há muito tempo deixei de ser alguém. Deixei de ser pessoa. Deixei de ser vivo. Deixei de ser feliz. Deixei de ser batalhador. Deixei de ser altruísta. Deixei de... me importar. Só que para tudo há um limite e eu tive de reconhecer que para mim não dava mais. Me tornara completamente desinteressado e sem expectativa. Dei de ombros para e vivi cabisbaixo na comodidade. Suspirava por desgosto aqui e ali. Revirava os olhos pelos menores motivos. Jamais um sorriso em meu rosto ao me fitar no espelho.

   Ordens, ordens, ordens, ordens... Faça isso. Venha aqui. Corra até lá. Mate aquele outro. Entregue. Limpe. Fique. Fale. Caminhe. Pare. Vire. Exulte. Silencie... "Apenas me toque.", "Não diga! Vai estragar tudo.", "Permaneça como está: perfeito com esse olhar inexpressivo, talvez gélido! Isso me excita, você sabe!", "Soa como se até mesmo quisesse estar aqui, Ankou... Será que consegui conquistar esse seu coraçãozinho de pedra com meu corpo, ahn? Não minta para mim."

   Rezo pelo dia que sua voz pare de ressoar na minha mente.

   Nada como o tempo (assim espero!).

   Ao menos, não me esqueci de como ter coragem, astúcia, força, determinação e em como redimir comigo mesmo. Saber perdoar meus próprios atos de negligência e conseguir erguer minha cabeça para tomar alguma atitude! Ninguém mais faria isso por mim... Não dava mais para ficar daquele jeito! Não dava mais para ser abusado, usado e oprimido... por mim e por ela! Tanto potencial que escondi!

   Minha vida foi escoada como água no ralo por um suicídio cabido, e assim, tornei-me um Ceifeiro (um castigo que a Thana dá aos que o cometem, tendo de ser um servente dela). Eu sou primeiro dos Ceifeiros, caso isso importe algo. Poderes foram entregues a mim, títulos, deveres e importância. Com poderes, vem a responsabilidade. Com títulos, vem a idolatria. Com deveres, vêm os trabalhos enfadonhos e desgastantes. Com a importância, vem a falta de privacidade.

   Eu não quis nada disso! Eu quis acabar com tudo o que eu estava passando em vida (não me lembro o que era, contudo, tenho certeza que foi ruim o bastante, afinal, eu estou aqui: punido, como o mais forte de todos os ceifadores)! Eu sinto que já sofri demais quando vivo e não é justo continuar sofrendo depois de morto! Eu só queria o grande "fim"! Thana pode ter apagado minhas memórias do meu passado, mas ela não pode apagar sentimentos! Eles estão dentro do meu coração, em algum lugar soterrados! Indicam-me o peso que carregava, porém, de qualquer forma, estou aqui, e não vou mais deixar que se sobreponham a mim. Fuji e jamais retornarei! Serei livre! Se não pude ter minha liberdade com o suicídio, terei nesta pós vida!

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Inglaterra, 10 de novembro de 1936...

Sheringham...

   Estou num pequeno barco, saindo da Irlanda (que foi onde eu surgi ao fugir para cá, o Mundo dos Vivos). Não quero falar com os tripulantes daqui, ainda que, batendo os olhos em cada um deles, estranho o fato de estarem quietos e cabisbaixos. Nem olham para os lados, não erguem o olhar, nem se atentam ao mar. Parecem todos paupérrimos coitados que navegam em direção à morte e transbordam esse semblante lamuriento tentando se contentar com o destino cruel.

   O quanto eu já não vi esse tipo maldito de expressão me fitando? Não suporto mais!

   Levanto do canto úmido cheirando a bolor e caminho para até a proa do barco, encarando a Inglaterra cinzenta e seu mar de um verde escuro sem graça. De qualquer forma, qualquer lugar é melhor que de onde eu vim. Só não sei explicar o motivo de eu ter pego o primeiro navio que vi, ao invés de ficar na Irlanda. Confesso ter sentido um estranho mal-estar. A imagem de um grande rochedo perto duma praia irlandesa veio à minha mente. Só um lapso de sei-lá-o-quê não deveria ser motivo para sair de um local com o rabo entre as pernas – ainda mais quando é de uma visão ridiculamente monótona!

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