Capítulo 3

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O fato de perder a memória já era o suficiente para me deixar atordoada, mas saber que pintei meu cabelo de marrom, por livre e espontânea vontade, é a cereja do bolo.

Juro.

Eu envelheci uns 10 anos com essa tinta. Já envelheci quatro desde a última vez que me lembro, então são 14 anos em um dia. Isso é inaceitável.

Puxo os fios e quase choro. Não gosto de castanho. O que eu estava pensando?

Tentei ser positiva e fazer piada, mas o humor adiantou de nada.

— Merda! — Escuto Gabriel bater a porta de entrada.

Ele precisou sair para uma emergência. Achei que iria demorar bem mais. Passei a última hora fuçando as minhas coisas, procurando por algo que me fizesse lembrar. Vasculhei tudo atrás do meu celular, mas nem telefone fixo temos. Queria tanto ligar para minha mãe, ou mandar uma mensagem.

— O que aconteceu? — pergunto, ao vê-lo entrar no quarto.

— Olha, não surta... — Puxa a touca que usa. Lá fora está frio e chovendo muito.

— Não posso prometer. — Levanto uma sobrancelha sugestivamente.

Não surtar não é exatamente uma opção no momento. O que mais poderia dar errado?

— Teve um problema na fiação desse lado da vila. Por isso me chamaram. Parece que alguma coisa estourou, um raio, ou sei lá, não sei como funciona, a antena está completamente queimada. Estamos sem internet.

Não entendo sua raiva até me lembrar que poderia usar a internet para me comunicar com meus pais. Não faço ideia se eles aprenderam a mexer no computador ou no celular nesses últimos anos, mas pode ser que sim. Com a filha em outro país, é bem melhor fazer vídeo chamada do que apenas uma ligação. E mais barato também. É possível. Porém, também improvável.

Nunca desprezei tanto o fato de sermos tão distantes desse meio como agora.

— Eu costumava usar muito a internet? — Estou curiosa para saber o tipo de pessoa que me tornei.

Tenho tantas questões.

— Mais ou menos. — Meneia a cabeça. — Acho que a tecnologia te evita mais do que você evita ela. — Ri, carinhoso. — Você quebrou três celulares só esse ano. Nem sei onde está o último. Simplesmente coloca em lugares que não consegue lembrar depois.

Isso é totalmente minha cara. Sinto meu rosto esquentar.

— Então, eu tenho um celular?

— Você usa mais como rádio e peso de papel, mas é pra ter. Só precisamos encontrar. — Aponta a casa. — Na última vez que te vi com ele, você estava no jardim, mas faz uns três dias. Vou procurar.

— Parece que continuo um desastre, ? — Mordo meu lábio. — Enfim, você usa muito a internet? — Tento animá-lo. Ele assente. Realmente parece bravo com a situação. — Não pode usar a do celular?

— Aqui não tem sinal nenhum de operadora. — Cruza os braços. — Talvez por isso você perca tanto o seu...

Não é por isso, mas vamos fingir que é.

— Se aqui não tem sinal, e não temos um fixo... — Ele arregala os olhos com minha descoberta. — Eu procurei, não lembrei — explico, e ele murcha um pouco. — Como eu ligo para meus pais?

Vejo-o empalidecer e engolir seco. Com certeza está reprimindo um palavrão.

Gabriel anda até a cama e se senta, colocando a mão no rosto e apoiando os cotovelos nas pernas. Não sei o que perguntei de errado. Será que eles não se dão bem? Por que meus pais não se dariam bem com ele? É impossível. Eu o conheço há pouco tempo, tecnicamente, e já sei que ele é bacana.

[DEGUSTAÇÃO] Todas as Noites que Nunca AconteceramOnde histórias criam vida. Descubra agora