O canal da mancha - Parte Apollo

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ADONIS NARRANDO

Ele me larga lá. Eu escondi um travesseiro lá. Então fica menos desconfortável. Boto o travesseiro no chão e me deito. Pego meu celular e volto a ler. Acho que é tudo o que me resta hoje, pois amanhã será um dia longo.

Olho por mais histórias. Escolho uma qualquer e começo a ler. É de um homem chamado Apollo. Ele é de Dunquerque, na França.

Vamos, Apollo. Me conte sua história.

DEPOIMENTO DO APOLLO

Eu sou Apollo. Moro em Dunquerque, na França. Talvez alguém que esteja lendo isso conheça a fascinante história de Dunquerque. 300 mil soldados britânicos foram resgatados da europa e levados de volta a ilha da Grã-bretanha durante a segunda guerra mundial. Isso aconteceu aqui.

E também foi aqui que o MEU britânico foi levado de mim.

Sinto muitas saudades de Harry. Ele foi único amor verdadeiro.

Tudo aconteceu em 1995, quando eu tinha 15 anos. Eu conheci um rapaz na escola, filho de um importante comerciante britânico. Nosso encontro foi bem inusitado. Estávamos na cantina, e eu como sou distraído esbarrei nele e derramei meu café em sua roupa.

Eu pedi inúmeras desculpas. Ele disse para ajudá-lo a limpar o café. Então fui até o banheiro e o ajudei. Mas tinha uma enorme mancha em seu uniforme. Que era branco. Ele disse que tinha que sair com o pai e que com a roupa daquele jeito, ele levaria uma bronca.

Eu disse que como tínhamos porte semelhante poderíamos trocar os uniformes, afinal não faria muita diferença eu chegar com a blusa suja, visto que sempre dava um jeito de derramar café em mim mesmo.

Enquanto trocávamos de roupa, vi que ele reparava bastante em meu corpo. E eu acabei reparando no seu também. Harry era bem branco, meio magro, cabelos loiros cacheados e olhos azuis escuros. Eu era moreno, bem fortinho, cabelo crespo castanho e olhos castanhos escuro.

Quando ele percebeu que eu também reparava em seu corpo. Ele terminou de se trocar comigo, veio até mim, me beijou rapidamente e saiu.

Meu primeiro beijo gay. Eu fiquei lá. Parado e confuso. Depois disso, passei a questionar minha sexualidade. Eu tinha gostado do beijo. No dia seguinte quando revi Harry, eu pedi para conversar em particular com ele. Ele com certeza estava apreensivo.

Talvez pensasse que eu fosse lhe bater. Mas eu o puxei pela gola da camisa e o beijei. Eu queria entender o que era aquele sentimento. E a partir daí, começamos a nos ver direto. Tínhamos nossos encontros escondidos. Fomos descobrindo um com o outro o que era aquele sentimento. Era o amor.

Foi assim que me descobri bissexual, e ele confirmou ser gay. Nossos encontros continuavam. E eu estava cada mais apaixonado. Foi com ele que fiz sexo pela primeira vez. Foi com ele que fiz inúmeras caminhadas à beira mar.

Mas naquela época, a França não é tão receptiva com gays e bis como é hoje, e nem o Reino Unido é o paraíso de diversidade, respeito e tolerância que é atualmente. Durante um de nossos encontros, algum empregado do pai de Harry nos seguiu. E no dia seguinte, Harry apareceu na escola com um olho roxo. Ele me disse que não podíamos mais nos ver.

Segundo ele, seu pai descobrira e preparou tudo para mandá-lo de volta para Brighton. Ele iria viajar em dois dias. E com muito esforço convenceu o pai a me ver. Ele não disse o que ocorreu em sua conversa com o pai. Só disse que não poderia mais me ver.

Passei o dia inteiro com ele. O último dia que tivemos juntos. E no dia seguinte, ele iria se preparar para a sua viagem. Ele me mandou o endereço em que moraria, para que eu pudesse mandar cartas ou um fax.

Então no dia da viagem, eu vi minha vida ir embora a bordo de um navio que partia para Brighton. Assim como o canal da mancha levou em barcos soldados para a Inglaterra em 1940. Hoje, 18 de Outubro de 1995, o canal da mancha leva Harry de volta para a Inglaterra.

Ver meu Harry indo embora naquele barco foi tão dolorozo! Eu fiquei triste. Eu me isolava de tudo e todos. Minha mãe veio conversar comigo. Ela perguntou se Harry era meu namorado. Eu disse que sim, e ela me abraçou. Falou que ela e meu pai já sabiam. E que continuavam a me amar. Isso foi muito importante para mim naquele momento.

Mas isso não impediu minha tristeza de me dominar. Todos os dias, eu olhava para o canal da mancha. As pessoas pensam que estava observando o mar de água gélida do canal. Mas é muito mais que isso. Do outro lado, em algum lugar, está Harry. Eu sintia como se eu estivesse o vendo a uma distância muito longa.

Até mandei cartas, mas elas nunca foram respondidas. Fui uma vez a Brighton. Mas foi como procurar uma agulha em um palheiro. Existem inúmeros outros Harrys em Brighton. E fazia 9 anos desde que eu o vira pela última vez.

Fiquei anos esperando ele voltar. Mas ele nunca voltou. Meus pais e amigos me encorajaram a conhecer novas pessoas. Fiquei com diversos homens e mulheres, mas nunca esqueci Harry.

Eu sei que era amor. Você que lê isso, procure entender seus sentimentos. Eu acredito no amor. Acho que existem almas gêmeas. Minha alma gêmea foi Harry.

Lhes deixo essa frase:

Procure sua alma gêmea, o amor cura qualquer dor.

Se um dia reencontrar Harry, sei que irei curar minha dor.

FIM DO DEPOIMENTO

ADONIS NARRANDO
Almas gêmeas? Será que isso existe?

Ler isso me faz refletir sobre amar e ser amado. Nunca me senti amado por ninguém, salvo minha mãe. Acho que não nasci para ser amado.

As pessoas tem repulsa de mim. O simples fato de gostar de garotos me fez um excluído. Isso me fez pensar em suicídio diversas vezes.

Mas... será que isso é necessário? Será que mais alguém também pensou nisso? Preciso saber. Tenho que achar alguém.

Achei.

Jin, de Busan na Coreia do Sul.

Vamos lá, Jin. Me conte sua história.

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