capítulo 1°

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POV Yasmim

📍 Curitiba, 27 de janeiro - 07h34 AM

Acordei cedo, mesmo com o voo marcado para as dez da manhã. Estava cansada, mas sabia que era o último dia naquela casa, o último dia em que eu poderia andar por aqueles cômodos. Desci as malas e, antes de sair, caminhei por cada canto, como se fosse uma despedida silenciosa. Cada espaço trazia lembranças diferentes: a sala onde eu e minha mãe costumávamos assistir filmes, a cozinha onde ela preparava nossas refeições favoritas, o corredor que parecia mais longo quando eu corria pequena. Tudo ali parecia impregnado de momentos que eu não teria mais.

Fui até o meu antigo quarto, o lugar que guardava as lembranças mais profundas. Parei na pequena sacada, onde tantas vezes observei o céu em busca de respostas que nunca vieram. O céu estava claro e calmo, mas meu peito estava pesado. Eu sabia que esse dia ia chegar, mas por que dói tanto? Mãe, por que você se foi? Não importa quantas vezes eu pergunte, nunca vou ter uma resposta. Tudo aqui me lembra você, e ao mesmo tempo, tudo está vazio sem você. Será que de algum lugar você consegue me ver? Eu não queria que as coisas fossem assim. Você sempre dizia que a vida continua, mas como? Como eu continuo sem você? Parece que cada passo que eu dou é como andar na areia, um esforço tremendo e quase não saio do lugar.

Fechei os olhos, deixando que o vento fresco me acalmasse. Não havia mais nada a fazer aqui. A casa, que antes era cheia de vida, agora era apenas um eco do que já foi. Respirei fundo, tentando conter as lágrimas. O dia estava apenas começando, e eu precisava ser forte. Passei a mão pelas paredes uma última vez, como se estivesse tentando absorver um pouco do que restava daquela casa. Fechei todas as janelas, tranquei a porta e coloquei as malas na calçada. O Uber chegou rapidamente.

— Bom dia! — o motorista sorriu, e eu sorri de volta, mais por educação do que por vontade.— Bom dia! Aeroporto, por favor.

Entrei no carro, e ele logo começou a conversar sobre o clima. Respondi algumas palavras automáticas, mas a verdade é que minha mente estava longe, presa nas lembranças e nas incertezas. Enquanto o carro deslizava pelas ruas de Curitiba, minha cabeça girava com pensamentos sobre o futuro. Será que estou fazendo a coisa certa? Será que o Rio vai me receber de braços abertos ou vai ser mais um lugar onde me sinto perdida? A verdade é que eu não tenho escolha. Preciso seguir em frente, mesmo que isso signifique deixar tudo o que conheço para trás. As ruas da cidade passavam pela janela como um borrão, e eu não conseguia deixar de pensar em como minha vida estava mudando. Lembro de momentos bons aqui, como o dia em que conheci Luan no museu. Nosso relacionamento parecia tão certo no início, tão cheio de promessas. É engraçado como a gente acredita que o amor vai durar para sempre. Eu realmente acreditei que seríamos nós dois contra o mundo, mas o tempo desgasta tudo, não é? Talvez o amor tenha se perdido no meio da rotina, ou talvez ele nunca tenha sido tão forte quanto eu pensei. Dois anos juntos, e no fim, tudo o que restou foi a amizade. Ele voltou para o Complexo do Alemão, e eu fiquei com as memórias. Será que algum dia vou amar alguém de novo assim? Será que vou encontrar alguém que me faça sentir que tudo vale a pena? As dúvidas me consumiam. Talvez eu o visse novamente no Rio, mas algo dentro de mim sabia que aquela história já tinha sido escrita e concluída.

Cheguei ao aeroporto, despachei minha mala e esperei pelo embarque. Cada minuto que passava parecia me aproximar mais de um novo começo, mas também de uma nova solidão. No avião, minha mente não parava. "Como vai ser morar com a tia Suzana? Ela é a única família que me resta, mas será que consigo me adaptar à vida dela? E a faculdade? Meu sonho de ser psicóloga parece tão distante agora... será que algum dia vou conseguir voltar a estudar? Estou começando do zero, e o medo de fracassar me sufoca."

O tempo passou rápido, e antes que eu percebesse, o piloto avisou que estávamos prestes a pousar. "Esse é o ponto de partida. Não importa o quão difícil seja, eu preciso continuar. Mas será que sou forte o suficiente?" Sussurrei para mim mesma, como se estivesse me dando coragem:

— Yasmim, sua nova vida começa agora.

Desci do avião e andei pelo aeroporto do Rio, tentando encontrar minha tia Suzana no meio da multidão. O calor era intenso, completamente diferente do clima de Curitiba, e eu me sentia desconfortável. Então, vi minha tia sorrindo ao longe, com aquele olhar familiar que me trazia um pouco de conforto.

— Seja bem-vinda, minha querida! — disse ela, com um sorriso caloroso.

Não queria atrapalhar a vida da minha tia dessa maneira, mas a situação estava ficando cada vez mais crítica lá em casa. Como estudo durante o dia inteiro, não tenho tempo para trabalhar, ou seja, mal conseguia me manter. Aceitei vir para o Rio com o único objetivo de arrumar um emprego e juntar bastante dinheiro. Quero voltar a estudar o quanto antes, mas antes preciso muito reconstruir a minha vida, colocá-la de volta nos trilhos. Antes, fiquei receosa de ser um peso para ela, mas no velório do meu pai percebi que não havia ninguém que se importasse comigo.

Depois de algumas horas, chegamos na favela. No início, foi tudo muito estranho; havia vários caras armados, a maioria olhava com uma cara estranha, e a todo momento eles se falavam por um rádio comunicador. Confesso que aquilo me assustou um pouco, já que lá em Curitiba a gente não costuma ver pessoas armadas no cotidiano, fora a burocracia para entrar no morro. Tive que abrir a minha mala, e eles olhavam com uma cara de deboche. Uma mulher disse em alto e bom tom: "Chegou mais uma marmita de bandido". Ignorei e me mantive firme, enquanto a minha tia falava horrores com eles.

Depois daquele pequeno conflito, subimos o morro e estávamos quase chegando à casa dela. Achei o morro igual a um labirinto, cheio de becos e vielas. Se me perder aqui, capaz de nunca me encontrarem, tudo muito confuso. Vários homens armados em cima das lajes, nas ruas, crianças jogando bola sem camisa, várias casas simples, moradores sentados na calçada conversando. Em meio à destruição, caos, crimes e crueldade, lá havia vidas, famílias, sonhos e esperanças. Me perdi tanto nos pensamentos que não prestei atenção no caminho. Cheguei até uma casa com o portão verde e a minha tia começou a bater nele.

— Esse é o Guilherme, meu namorado — disse minha tia, e eu me apresentei, tentando parecer à vontade.

Por dentro, meu coração estava acelerado. Outro homem na minha "casa"... será que posso confiar nele? Não conheço muito bem a tia Suzana, e ainda menos o Guilherme. Mas estou aqui, e preciso aprender a confiar de novo. Depois do que vivi com meu pai, essa é a parte mais difícil. A casa era simples, sem reboco nas paredes, mas limpa e organizada. Não importa como o lugar parece por fora, importa o que está dentro. Talvez aqui eu possa encontrar um pouco de paz.

Minha tia me mostrou o quarto que seria meu. Era grande e arejado, o que me surpreendeu. Esse quarto é maior do que eu esperava. Talvez eu consiga fazer desse lugar o meu refúgio, um espaço só meu para começar a me reconstruir. Desfiz minhas malas, tomei um banho frio para aliviar o calor intenso e, por alguns minutos, me deixei perder nos pensamentos enquanto mexia no celular. Mais tarde, minha tia sugeriu que eu saísse para conhecer o morro. A ideia me deixou desconfortável. Andar sozinha por aí? Eu mal conheço esse lugar, e tudo o que vi até agora me assusta. Mas eu não posso viver com medo para sempre. Talvez seja bom dar uma volta, ver como as coisas são. Caminhei pelas ruas estreitas, e a cada esquina, sentia os olhares curiosos das pessoas. Será que eles estão me julgando? Será que acham que eu não pertenço a esse lugar? Talvez estejam certos. Eu me sinto como uma estranha aqui. Depois de um tempo, uma mulher simpática me chamou.

— Nova moradora? — ela perguntou, com um sorriso amigável.— Sim, cheguei hoje — respondi, ainda cautelosa.

Nos levantamos daquele lugar e ela me chamou para ir até a praça sentar e conversar um pouco. Continuamos a andar e conversamos sobre várias coisas aleatórias. Ela me contou do seu namoro com o Felipe e das dificuldades que o casal enfrentava. Pelo visto, ele é um homem controlador e bastante possessivo. Contei para ela alguns detalhes, que saí de Curitiba, como era a minha vida antes de vir morar no Rio. A conversa fluía de forma inesperada. Fiquei pensando se realmente surgiria uma amizade.

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