Capítulo 4 - Retribuição Infame

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Foi a primeira vez na história que contemplaram um Hyacinthum antes dos trinta anos de idade.

Aquele momento entregou a Luna um dilema: viver na cidade Soberania ou ficar com sua família. Atônita, a garota trancou-se no quarto, ficando sozinha o resto do dia. Eu não quero você, pensou Luna, como se esperasse que o papel retrucasse suas palavras afiadas.

Sentada no chão, encarando O Passe como uma bomba relógio, a garota não conseguia ouvir seus próprios pensamentos. A voz de seu irmão mais novo gargalhava dentro de sua cabeça. A lembrança de Fratris rabiscando o calendário surgia na mente dela. Outras recordações de momentos compartilhados com sua mãe, fizeram Luna odiar mais aquele pedaço de papel.

"Escolha sempre a família. Eu sei que esse mundo nos dá muito pouco, mas o pouco sempre será muito, quando partilhado com aqueles que amamos". Foi a última coisa dita pelo pai de Luna, antes de morrer, arrependendo-se por passar anos sonhando por algo que o separaria de sua família.

*****

Puer bateu na porta várias vezes, deixando um prato com bolachas no chão. Fratris berrava do outro cômodo, para saber se a porta já havia sido destrancada.

A noite, alguém se aproximou do quarto sem bater; Luna sabia que era sua mãe. Ela destrancou a maçaneta e voltou ao seu lugar. Os olhos de Angela foram da filha para O Passe e de volta para sua primogênita.

— Não é uma escolha muito difícil — disse a mãe. Ela se sentou na beirada da cama. — Chegou a hora de descobrir se a cidade Soberania se parece com os desenhos que você fez quando tinha dez anos.

— Essa retribuição... Eu... — Luna não encontrava as palavras certas para se expressar.

— Isso não é um presente, Luna. É uma honra — expôs Angela. — Seus irmãos e eu jamais nos perdoaríamos se você ficasse.

— Há muito tempo que eu aceitei que nunca subiria pelo Elevador! — mentiu a jovem.

— Todos nós sonhamos com isso, filha. — Angela cruzou os braços, sorrindo. — Às vezes, o tempo passa e o sonho enfraquece. Mas, ele estará lá, no fundo dos nossos desejos.

— Mas, e o Puer? Fratris? Eles precisam de mim! Você precisa de mim, mãe.

— Nós te amamos filha. Amamos o suficiente para deixar você ir!

Luna sentiu a incerteza de sua escolha consumi-la. Um vulto de arrependimento piscou em seus olhos. Angela segurou a mão da filha.

— Não faça isso — disse a mulher mais velha. — Não se arrependa te ter salvo o nosso rei. Você protegeu uma vida filha, deve se orgulhar disso!

— Eu menti — começou Luna, — menti para o Puer. Eu estou com medo.

— Somos acompanhados pelo medo. Mas, também somos acompanhados pela esperança. É uma questão de perspectiva.

— E se eu fracassar como cidadã de Soberania? — perguntou Luna, sentando ao lado de sua mãe.

— Você se chama Luna por um motivo. Seu lugar é no alto — disse Angela. No alto, brilhando, pensou a mãe, abraçando a filha.

*****

Luna passou o resto da noite no quarto. Lá fora, a chuva continuava a cair, limpando as ruas. Durante o jantar, ela contou para sua família a sua decisão. Sem fome, ela retornou ao quarto e adormeceu.

A Salvadora do Rei despertou no outro dia com seus irmãos arrumando sua mala. Foi o momento perfeito para se despedirem.

— Você promete escrever para nós? — insistiu Puer.

— Sabe muito bem que os moradores de Soberania não podem mandar cartas para os moradores de Lunaelumen — lembrou Luna, colocando a fotogravura de seu mestre em sua mala.

— Mas, o rei mandou uma carta para você — disse o menino.

— Sim, pois ele é o rei! — exclamou Luna.

— Ah, pense um pouco — disse Fratris, olhando para a irmã. — Você salvou o Rei Solis. Além d'O Passe, tenho certeza que ele fará qualquer coisa por você, como forma de agradecimento.

Lá fora, uma carruagem aguardava Luna. A família estava reunida para o adeus.

Puer foi o primeiro a correr e despedir-se de sua irmã. Depois Fratris, e por último sua mãe. Dentro do abraço coletivo de sua família, Luna prometeu:

— Fratris me deu uma ideia. Talvez, o rei me conceda mais um favor. Pedirei para que levem vocês lá para cima!

Com um último olhar de adeus, Luna entrou na carruagem. Puer correu enquanto pôde, ao lado do transporte de madeira, acenando para a irmã.

Os cavalos trotaram para longe. No interior do transporte, um Guerreiro pigarreou, assustando Luna. Ele tinha a pele escura como a noite e olhos grandes. Seu corpo estava coberto por uma armadura que emitia ruídos metálicos a cada solavanco.

— Fico feliz em conhecê-la, Luna. Me chamo Satalles. Serei seu guia em Soberania.

— Obrigada — falou Luna, observando-o com atenção. — Você é um guerreiro, certo? — indagou ela, já sabendo a resposta, pois a armadura dele respondia a pergunta.

— Sou o 1º Guerreiro Real, braço direito do rei — respondeu o alba, olhando para a paisagem que corria pela janela.

— Por que o 1º Guerreiro Real foi designado como meu guia? — perguntou Luna, olhando-o de soslaio. — Seu cargo vai muito além disso.

Uma certa desconfiança pairou no ar. O guerreiro olhou Luna com um olhar diferente, e ela retribuiu.

— Você parece uma Hyacinthum bem incomum, Luna. — O guerreiro deu um sorriso com o canto da boca. — Eu não poderia esperar menos da Salvadora do Rei.

Luna fitou o Alba a sua frente, sentindo um arrepio na nuca. Alguma coisa no jeito dele a deixou incomodada. Uma dúvida corrosiva.

Alguns minutos depois, a carruagem parou abruptamente. Lá fora, Luna encarou O Elevador. Porém, antes que ela subisse, Satalles a impediu de seguir adiante.

— Há algumas exigências, Luna, antes que se torne uma cidadã de Soberania — informou o guerreiro. — Existem protocolos que os Hyacinthums contemplados com O Passe devem seguir. Não permitimos essa aparência. — Ele apontou o dedo para o cabelo dela, depois para os trajes. — Nem mesmo estas roupas. Você precisa seguir nosso estilo de vida agora.

Uma equipe de albas aguardava Luna em outra carruagem. Seis albas mulheres armaram um barracão improvisado ali mesmo, em meio a clareira.

Luna teve suas roupas trocadas e sua mala jogada fora. A única coisa que ela conseguiu salvar, escondida do olhar cauteloso do guerreiro Satalles, foi a fotogravura de seu mestre.

No interior do barracão, a garota teve o rosto maquiado e seu cabelo cortado rente a nuca. Depois de algumas horas, Luna olhou o espelho a sua frente, não reconhecendo a si mesma.

Satalles guiou-a. O Passe ganho por Luna foi inserido num dispositivo retangular, do lado de fora do Elevador. O transporte levadiço desceu. O guerreiro cedeu espaço para Salvadora do Rei passar, depois a acompanhou.

Enquanto subia, rumo a uma nova vida, Luna deu as costas para o seu lar, lutando contra o medo que crescia dentro de si.


Fruto PodreOnde histórias criam vida. Descubra agora