Do Amor

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Vi Gawain afundar nas águas como a pedra antes dele. Um instante depois, ele veio à tona, desesperadamente tentou se agarrar à uma rocha, mas logo afundou de novo, carregado por uma onda, e desapareceu de vez.

Ainda apavorado, arquejei, arfei e respirei fundo, tudo ao mesmo tempo, e a seguir desabei na base estreita com as pernas tremendo. De novo, passei os braços em torno do tronco da árvore, que a esta altura já devia estar apaixonada por mim de tanto que eu a abraçava.

— Não se mexa! Arrumaremos uma corda! — Ouvi outra voz lá no alto, e só então ergui os olhos. Os rostos de John e Gillian me encaravam com sobrancelhas arqueadas de espanto.

Meneei a cabeça, sem conseguir responder. Minha garganta estava fechada e não só minhas pernas tremiam, mas agora todos os músculos tinham resolvido imita-las.

A cabeça de John desapareceu. A de Gillian ficou por lá, me encarando com seus olhos azuis, dos quais eu só divisava as sombras. O sol já se pusera; somente alguns raios de luz rubros e dourados escapavam do horizonte, deixando uma tênue claridade arroxeada no ar entremeado de gotículas que saltavam da espuma das ondas. Seria lindo se eu não estivesse apavorado.

Ouvi Gillian rir.

— Vai ser difícil explicar como é que foi parar aí. Não disse a John que iria encontrar-se com uma garota?

Dei um sorriso torto como resposta e abracei a árvore com mais força, temendo perder os sentidos. Sentia o sangue quente escorrer do ferimento na testa e minha cabeça doía como se mil demônios dançassem dentro dela.

— Foi isso que fez John desconfiar... — Gillian voltou a falar. — Um tempo depois que saiu, ele chamou-me para irmos procurá-lo. Sabíamos que mentira e não havia garota alguma, pois você se comportava como um monge há meses. Foi sorte! Se tivesse dito qualquer outra coisa não teríamos nos preocupado. Então, surpresos, nos deparamos com Gawain. Ele rolava pedras para o penhasco, xingando e dizendo seu nome. Estava tão ocupado com isso que não nos viu chegar. Aliás, só viu quando era tarde demais... John o pegou pela gola e o jogou para baixo em um movimento tão rápido que eu mal entendi o que havia acontecido.

Meus olhos quase se fechavam e uma névoa começava a toldar minha mente. Sabia que Gillian falava sem parar apenas para me distrair e me manter acordado. Se eu perdesse os sentidos, com certeza escorregaria de meu poleiro improvisado. Forcei minhas pálpebras a permanecerem abertas, enquanto procurava me ajeitar em uma posição mais segura.

Então, algo surpreendente aconteceu. Uma lua cheia surgiu no horizonte e seus raios suaves misturaram-se aos últimos raios do poente. O céu explodiu em cem mil cores diferentes e até mesmo as ondas acalmaram-se, contemplando-o.

A beleza do encontro do dia com a noite fez, de repente, o amor pela vida  invadir-me com seu calor ardente. Com um suspiro profundo, relaxei de encontro à parede de pedra onde minhas costas se apoiavam, acalmando-me como as ondas. A angústia que me assolara antes do encontro com Gawain desapareceu por completo.

Eu estava absurdamente feliz em estar vivo!

E não tinha mais dúvidas quanto ao meu amor por Marion, ou o dela por mim. Sentia-me repleto de amor, envolto nele. Todos os meus receios quanto ao futuro desvaneceram-se em um ruflar de asas junto com minhas inquietações quanto a Deus e aos anjos.

E foi neste momento que vi uma gaivota branca pousada sobre o galho que me salvara. Então soube – esse era o tal anjo, incorporado agora, naquela gaivota. Os olhos dela me examinavam, e eu pude notar a expressão divertida, sorridente, mas também bastante cansada, que parecia perguntar quando eu me aquietaria e deixaria de lhe dar tanto trabalho.

— Robert! — Novamente Gillian, e a voz dele soava desesperada.

— O que foi? — consegui dizer.

— Você não estava se mexendo...

Olhei para ele com um sorriso torto.

— Acho que tive uma alucinação... — respondi, desta vez tentando manter os olhos bem abertos.

— Sua cabeça está sangrando! Aguente mais um pouco. Já vejo John ao meio do caminho, e ele traz mais homens com ele. Logo sairá daí!

Retruquei com um riso alto. Eu enfim despertara de vez.

— Vai ser mesmo difícil explicar como vim parar aqui...

Ele riu de volta.

A lua resplandecia e a noite seria clara. Eu estava feliz, tão feliz que quase agradeci a Gawain por ter me atirado no abismo e, assim, me despertado. Estivera dormindo, sonolento e desatento ao amor ao me deixar envolver pelas dúvidas e pela tristeza.

— Gillian? — chamei-o. — Ainda está ai?

Desviei os olhos da lua e os voltei para cima. É claro que ele estava. Por incrível que pareça, um maldito Hastings se tornara meu amigo mais fiel. Isso era a prova viva que deuses ou anjos controlavam nossos destinos e que gostavam de pregar peças.

— Sim... Preferia estar no salão, quente e cheio de gente, obviamente. Mas devia estar maluco quando pensei que teria uma noite tranquila. Esqueci que você nos acompanhava... — ele respondeu.

Respirei fundo, pestanejando, lutando contra a exaustão.

— Cante algo... — pedi. — Você é um péssimo cantor, mas ao menos me manterá acordado.

Ele pigarreou, preparando a voz. E a seguir, começou a cantar.

A gaivota voara do galho, mas ainda pairava por perto. Desejei cumprimentá-la, embora ainda estivesse agarrado a minha árvore-garota, com a qual eu quase trocava beijos, agradecendo-a por me salvar. Metade de minhas pernas e meus pés pendiam no abismo, mas enchi-me de coragem e soltei um braço.

Apontei os dedos para a gaivota-anjo e, com um murmurio rouco e desafinado, acompanhei Gillian na canção:

"Dê-me amor, dê-me amor

Dê-me paz, dê-me vida..."

"

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SOBRE AMOR E LOBOS Vol. 2,5: Regras de Amor e Guerra (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora