Diante do Abismo

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Eu não acredito em anjos. Na verdade, até sorrio  e avalio com olhos altivos e um pouco de pena às pessoas que acreditam. Converso com frequência com o meu, já devem ter percebido, mas ainda assim uma parte de mim acha que apenas fala consigo mesma. Apesar disso, neste dia meu anjo estava a postos e atento, e ainda que eu duvidasse de sua existência,  mais uma vez me  salvou.

Caí alguns metros, como um passarinho que está aprendendo a voar, batendo as asas, no meu caso, os braços, procurando desesperadamente agarrar-se a qualquer coisa. De repente, enrosquei em algo - que só depois percebi ser um galho de uma árvore que crescia em uma reentrância na escarpa -  e este susteve minha queda.

O galho envergou e eu balancei à beira do abismo; mas com um girar mais hábil do que qualquer pássaro, consegui voltar meu corpo para o tronco da árvore e agarrá-lo com as mãos crispadas. O tronco não me aguentaria por muito tempo, mas me deu  o necessário para jogar-me de encontro as pedras da base onde a árvore crescia. Estatelei-me com um baque dolorido, quase escorreguei, mas cravei minhas unhas nas frestas e, com esforço, consegui alçar-me para a plataforma salvadora; uma saliência no penhasco com trinta polegadas de largura e outros tantos de profundidade.

Arquejando de susto, abracei o tronco com os dois braços, mais amorosamente do que se este fosse o corpo da garota que eu planejara conquistar, poucos momentos atrás. Com movimentos lentos e cuidadosos, sentei-me na base de pedra. O lugar era tão estreito que minhas pernas ainda pendiam no penhasco; bem abaixo delas, as ondas dançavam e formavam correntezas entre rochas pontiagudas, rugindo como trovoadas.

Ergui o rosto, procurando por Gawain, e vi o rosto dele alguns metros acima, recortado contra o céu. Escutei um xingamento, e ele desapareceu. Eu estava fora de alcance, mas ao mesmo tempo, em uma armadilha. Virei a cabeça, procurando desesperadamente uma saída. A escarpa era quase lisa e seria difícil escalá-la em condições normais. Contudo, minhas mãos tremiam e o sol encostava no horizonte; logo estaria escuro, o que tornava qualquer tentativa de  subir ou descer impossível.

Respirei fundo e fechei os olhos, tentando me acalmar e esquecer a dor em minha testa. Mas subitamente, um barulho me fez abri-los, a tempo de ver que uma pedra do tamanho de uma cabeça vinha em direção da minha. Desvie-me para o lado e ela bateu na minha coxa com uma pancada dolorida; gritei de dor e quase escorreguei de novo em direção às rochas e à uma morte rápida.

— Morra, maldito! — ouvi Gawain berrar lá do alto e, em seguida, o vi rolar mais uma pedra para baixo.

Desvie-me mais uma vez e ela caiu e afundou no mar, espirrando água para cima com um barulho espalhafatoso; esta não me acertara, mas passara bem perto.

Ele xingou e sumiu por um instante, certamente para arrumar mais projéteis. Em algum momento estes me derrubariam de onde eu me equilibrava de maneira precária.

Examinei novamente a parede de pedra, rezando e procurando como escapar. Por fim, meus olhos desviaram-se para baixo e para as ondas. A queda era longa, mas não impossível. Bastava pular para bem longe da escarpa e rezar para não despencar sobre uma rocha. E depois rezar para as ondas não me esmagarem, e rezar novamente para conseguir nadar até a praia três milhas a direita de onde eu estava. Um monte de trabalho para o anjo, mas afinal, quem queria um anjo preguiçoso?

Muito lentamente, ergui-me com as costas apoiadas na pedra gelada, os joelhos tremendo, enquanto via o abismo sob a ponta de meus pés. O sol encostara na água e a transformara em uma lâmina colorida de tons vermelhos como uma fogueira, terrível e fascinante ao mesmo tempo.

Um belo lugar para morrer...

Morrer sem rever Marion, que eu quase traíra mais de uma vez, e a quem não merecia. Talvez minha morte fosse justa, ponderei, meditando também se havia algum céu ou inferno me aguardando. Então, questionei-me se havia um Criador e, se havia, quem O criara e quando, antes do Universo existir. E a pergunta mais importante de todas - se Edward, meu irmão, iria mexer em meus objetos de estimação que eu deixara em Locksley... Outras mil questões levantaram-se em minha mente, e logo percebi que eram apenas um jeito de rebelar-me contra a morte e retardá-la o máximo possível.

O vento aumentara e fazia meu cabelos baterem contra o rosto; eu tinha a impressão de que ele também queria me tirar logo dali. Comecei a ficar tonto e fechei os olhos, murmurando palavras de perdão a todos àqueles a quem havia ofendido, mas livrai-nos do mal... amém!, rezei, espalmando as mãos de encontro à escarpa atrás de mim e preparando-me para pular.

De súbito, escutei  um berro agudo , e depois algo grande despencou, passando tão rente ao meu corpo que quase me levou junto. Mãos agarraram-se na beirada da pedra, a um palmo de meus pés.

Segurei um grito e novamente abracei a árvore salvadora.

Então, surpreso e aterrorizado, vi o  que, ou melhor quem, despencara quase sobre minha cabeça. Gawain! O maldito queria morrer comigo? Lançara-se ao meu encontro para juntos e abraçados cairmos sobre as rochas?

Aturdido, vi que ele tentava alçar-se para alcançar o lugar ocupado por mim, enquanto eu o observava parado como uma pedra de gelo.

— Jogue-o para longe, seu idiota! — uma voz berrou, e foi seguida por uma flecha que resvalou na cabeça de Gawain, já próxima de meus pés.

Os olhos dele encontraram-se com os meus; ambos brilhavam, aterrorizados.

— Ajude-me! — ele implorou, arfando com a boca aberta, com certeza esquecido que tentara me matar há apenas alguns instantes.

Meus lábios se estreitaram. O ódio me fez esquecer todo o resto, até mesmo onde eu estava. Ergui um pé, pronto para chutá-lo, assim como ele fizera comigo. No entanto, titubei e parei, o joelho dobrado e o pé erguido como se fosse subir um degrau alto.

Nunca matara alguém. Pestanejei, em dúvida.

— Não há por que brigar! Seremos amigos! — Gawain rosnou para me distrair, já quase conseguindo agarrar a perna na qual eu me apoiava.

Eu nunca matara alguém... Mas há sempre uma primeira vez para tudo na vida. Com um rugido, acertei o nariz dele com um chute direto e forte. O rosto dele se torceu de dor e espanto, os olhos se arregalaram e, com um berro, ele abriu os braços e desabou em direção às ondas.

SOBRE AMOR E LOBOS Vol. 2,5: Regras de Amor e Guerra (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora