Capítulo 21

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Chris segurou a mão de Dulce e a conduziu para rua iluminada logo à frente.

Dulce identificou um ruído abafado da música eletrônica vindo da boate ao passarem defronte o edifício. Ela parou por um momento e, pela primeira vez, pôde ver o prédio onde estava vivendo. A ampla construção de dois andares poderia ser confundida com um armazém de tijolos aparentes, se não fosse pela fachada gótica. Esculturas de gárgulas decoravam o beiral do telhado e as janelas mostravam belíssimos vitrais que refletiam uma miríade de cores com o piscar de luzes no interior da boate. Uma escultura gigantesca da maior gárgula que ela já vira, em posição de ataque, guardava a entrada.

Sobre as portas duplas de madeira maciça, via-se a placa com o nome rabiscado em néon vermelho: Carfax Abbey.

De repente, Dulce foi golpeada pelo surrealismo da situação. Ela estava hospedada num edifício que concentrava três mundos. Dois freqüentadores trajando roupas no estilo gótico, com rostos pálidos e pálpebras cobertas de sombra negra, saíram para a calçada e a encararam com desconfiança.

Ela hesitou por um momento e decidiu procurar Sebastian.

- Chris, podemos entrar por um minuto? Eu gostaria de falar com seu irmão.

- Sebastian? - Ele arqueou a sobrancelha em confusão. - E o que ele estaria fazendo aqui?

- Bem, esta é a boate de vocês dois.

Chris lançou olhar enojado para o grupo de góticos parado diante da boate.

- Não. Dificilmente esse tipo de pessoas estaria associado a nossa família.

- Então, onde é o clube?

- O White's? Não é longe daqui, mas não podemos ir até lá. É um clube exclusivo para cavalheiros.

Chris não se lembrava da própria boate, mas recordava-se do nome de um clube do século XIX. Por quê?

Um táxi amarelo buzinou atrás deles. Dulce deu um pulo, assustada, mas Chris não reagiu.

- Devemos tornar o transporte público, ou você prefere caminhar?

Ela refletiu por um momento.

- Vamos caminhar.

Precisava do ar frio da noite para clarear as idéias e ajudar a encontrar o sentido de tudo que estava acontecendo.

Caminharam lado a lado pela calçada, com o silêncio entre eles disfarçado pelos sons da cidade. Dulce aproveitou a oportunidade para estudar a reação de Chris ao ambiente. A viatura policial em alta velocidade, com as sirenes ligadas, os arranha-céus gigantescos, o tráfego intenso, nada disso provocou nele a menor admiração.

Definitivamente, Chris apresentava amnésia seletiva. Havia algo que ele estava tentando esquecer.

Ele precisava de um médico, e não do curandeiro que o diagnosticara por telefone.

Chris tinha de ver um especialista, e ela descobriria algum médico decente naquela cidade.

- Veja! - Chris disse de repente, arrastando-a para vitrine de uma loja.

Fascinado, ele observou a decoração natalina, com um trenó puxado por dois cervos, rodeados de gnomos simulando a construção de brinquedos.

- É fascinante! - ele exclamou, pasmando. - Veja esse aqui!

Chris parou diante da vitrine seguinte, e percorreu a rua abarrotada de transeuntes para admirar a beleza da decoração colorida como uma criança encantada com o Natal.

Dulce se deixou contagiar pela alegria inocente. Quando ele tomou-lhe a mão, não tentou se esquivar. Ela riu com ele e admirou cada vitrine como se também fosse sua primeira vez.

- Elizabeth deveria estar aqui! - disse de repente, parando diante de uma loja de bonecas de louças. - Ela tem dúzias dessas, mas são muito frágeis, e a maioria está quebrada. Na verdade, minha irmã sempre foi muito mimada por ser a única menina da família.

- Posso imaginar - ela disse com ar sonhador. - Deve ser bom ter três irmãos mais velhos.

- Elizabeth é paparicada por todos nós. Ela é frágil e fica doente com facilidade.

Mas está sempre alegre, apesar da saúde delicada. Sempre diz que ela deve ser alegre, pois é minha a função de ser o sério da família.

Dulce ponderou sobre a descrição. O Chris que ela conhecera no bar era mais do que sério. Chegava a ser taciturno. Mas agora, ela não conseguia relacioná-lo com o homem risonho que caminhava do seu lado.

- Talvez ela confunda seriedade com responsabilidade - Dulce opinou, e o comentário provocou um sorriso indulgente nos lábios dele.

Chris parou e olhou para ela.

- O que você quer dizer?

- Bem, me parece óbvio. - Ela encolheu os ombros. - Você me disse que Sebastian é o relaxado, Christian é o selvagem e Elizabeth é a frágil. Parece que cabe a você cuidar de todos eles.

Ela se calou depois da explicação. Talvez tivesse ido longe demais. Mas, de alguma maneira, sabia que Chris se preocupava com os irmãos, apesar da amnésia. Ele era boa pessoa, bom irmão e bom filho, o tipo de homem que não poupava esforços para salvar uma estranha como ela.

Depois de alguns momentos, o silêncio dele a incomodou. Os olhos haviam perdido o resplendor entusiasmado, e a boca se apertava numa linha solene. Chris voltara a ser o homem que ela encontrara no bar.

- Eu devia ter cuidado melhor dos meus irmãos.

Assim que as palavras escaparam dos lábios, Chris desejou voltar atrás. Nem ele mesmo entendeu o que dissera. Fizera todo o possível pelos irmãos desde a morte dos pais.

No entanto, sentia que deveria ter feito mais. Se tivesse sido mais forte, poderia ter impedido tudo o que aconteceu. Ele deveria ter...

- Bem, na minha opinião, você fez um trabalho maravilhoso.

A voz doce o distraiu das reflexões. Ele sorriu e se voltou para Jane.

- Assim espero.

- Não é fácil ser o irmão mais velho.

- É verdade.

Ele procurou o olhar de Dulce, e ela ofereceu-lhe um sorriso encorajador. Sorriu em retorno, feliz por ela estar ali

- Oh! Veja aquilo! - Dulce disse de repente, apontando para um carrinho de cachorro-quente. - Tenho de comprar um!

Ela soltou a mão e correu na direção do vendedor. O homem de pele cor de oliva e bigodes negros não demonstrou a mesma felicidade por ter de esperar, enquanto ela decidia se queria mostarda e salada de repolho no sanduíche.

Por fim, Dulce optou por todos os acompanhamentos que tinha direito.

Memórias De Um Vampiro - Adaptada - Vondy. Onde histórias criam vida. Descubra agora