DESPERTEI COM o sol a inundar meu quarto, alguns diriam que essa é uma ótima maneira de despertar, que ser agraciada pelo sol é uma dádiva a qual devemos saber aproveitar, contudo, dias novos não trazem muita esperança para mim, para minha família; sendo sincera, eles apenas aparentam trazer mais caos.
Meu braço dói, as marcas causadas por meus dentes estão visíveis, visíveis até demais para o meu próprio bem.
Eu menti, menti deliberadamente para o psiquiatra da clínica de reabilitação, disse a ele que estava bem ao menos umas vinte vezes consecutivas. Aceitei falar sobre as coisas que me causam dor, apenas para que ele acreditasse em minha mentira bem elaborada. Prendi o choro incontáveis vezes naquele dia, ele não poderia saber que eu não havia feito progresso algum nos longos e infindáveis meses nos quais fiquei internada.
Ele não deveria saber. Ninguém deveria saber. E então eu fiz a pior merda possível: contei a Amy que eu menti, contei a ela e ela não surtou comigo, tampouco pareceu decepcionada, em seu semblante apenas havia preocupação. Eu a trouxe para o meu mundo dos avessos e, muito provavelmente; não deveria ter feito isso.
Não deveria ter complicado, ainda mais, sua vida. Não é como se ela precisasse de uma amiga que necessita, desesperadamente, se machucar fisicamente para aliviar toda a dor que sente em seu interior. Ela definitivamente não precisa disso... não precisa de mim.
E, ainda assim; aqui está ela. Deitada em minha cama, ressonando como um anjo. Um anjo, é com isso que ela se parece, não digo isso devido à sua pele alva, aos cabelos platinados, tampouco aos olhos azuis cristalinos, não digo isso devido à sua aparência; mas sim ao enorme coração que guarda dentro de seu peito.
Amélia é ouro e eu sou; no máximo; urânio. Ela reluz e eu causo câncer... eu sou um câncer, essa é uma boa definição, uma ótima palavra para me descrever; pois, tal como as células cancerígenas fazem com as saudáveis, estou a intoxicar tudo e todos que me tocam.
Machuca. Machuca saber que eu não faço bem à Amy, que sou incapaz de fazer bem à ela algum dia. Eu sou assim, fui fodida psicologicamente tantas vezes... não por meus pais, mas por outros parentes. Por outras pessoas. Não tem mais volta para mim e sim, eu sei que esse discurso de autopiedade é um saco, que ninguém merece me ouvir a reclamar por horas a fio sobre o quão horrível o destino tem sido comigo quando, claramente, há pessoas com problemas maiores do que os meus por aí.
Sento nos pés da cama, no melhor estilo "índio" e fixo meus olhos na parede azulada. O quão irônico pode ser o fato de que uma adolescente provavelmente depressiva mora em uma vizinhança que possui a cor da tristeza como cor base para todos os seus edifícios e construções?
A música do Troye Sivan que diz "Live this blue neighbourhood" nunca fez tanto sentido quanto faz agora. Não estou dizendo que a maldita vizinhança é a culpada de todas as coisas ruins que tem acontecido comigo nos últimos tempos, apenas estou a dizer que ela — bem como os seus habitantes — não faz o mínimo necessário para que eu volte a ser eu mesma; para que eu volte a me sentir bem.
Talvez eu necessite deixar essa vizinhança, talvez precise fugir para longe, bem longe, para um lugar no qual eu possa ficar só com meus pensamentos como acompanhantes fiéis; para um lugar no qual eu não contamine mais ninguém.
Eu sou uma praga que precisa ser contida e, o pior de tudo, eu sei disso. Assim como sei que não deveria ter mentido para o psiquiatra, nem para mamãe, nem para Lucas. Eu sei que é errado; mas eles não precisam saber que nem mesmo a clínica de reabilitação foi capaz de fazer com que os demônios que me habitam se calassem.
Os demônios que me habitam... ah, eles são as companhias desnecessárias que eu poderia viver tranquilamente sem. São como aqueles visitantes indesejados que apenas almejamos a rápida ida... mas; diferentemente dos visitantes indesejados, os demônios se negam a me deixar.
É difícil dormir quando seu cérebro insiste em repetir inúmeras vezes o quão inútil e descartável você é... o quão inútil e descartável eu sou. É isso o que meu cérebro me diz, é isso que ele me diz e se ele me diz, eu sou.
Eu sou inútil e descartável, completamente inútil e descartável e as vidas das pessoas seriam muito melhores se eu não fizesse parte delas. A vida de Amy seria muito melhor se eu não fizesse parte dela.
Cala a boca. Cala a boca. Apenas cale a porra da boca! Eu não aguento mais; não aguento. Não dá pra viver assim... não dá!
Engulo o choro, garotas fortes não choram, elas não choram. Eu sou uma garota forte... não, eu não sou uma garota forte, mas eu preciso ser uma. Preciso ser? Sim, preciso ser.
Mamãe não gosta de garotas fracas, ela não gosta. E ela precisa gostar de mim, precisa sim.
Cala a boca. Por que você não cala a boca? Você fala demais; demais!
Bato levemente em minhas têmporas, talvez com força em demasia, visto que minha cabeça lateja instantes depois. Apenas isso é capaz de a fazer calar a boca... de me fazer calar a boca.
Sua voz para de ecoar em meu cérebro, a minha voz para de ecoar.
Amy ainda está dormindo, parece não ter notado toda a euforia pela qual eu estava passando instantes atrás. Talvez seja melhor assim... é melhor assim.
Volto a me deitar ao seu lado e fico a observá-la. Tão linda. Deveria ser proibido alguém ser tão lindo assim. Sim, deveria.
Fecho meus olhos novamente, não porque eu estou com sono, mas sim porque meus demônios me deixam quando eu mantenho meus olhos fechados e eu realmente preciso que eles me deixem em paz. Realmente preciso de uma folga.
Um suspiro aliviado escapa por entre meus lábios. Eles finalmente me deixaram em paz novamente... sim, me deixaram em paz.
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Silêncio - Não deixe que vejam
Roman pour AdolescentsVizinhança Azul de Becker Hills, um lugar pacato e extremamente cativante, repleto de famílias unidas, amizades verdadeiras e... segredos. As construções de tons azuis, bem como as cercas de madeira exageradamente brancas, escondem os mais profanos...