AO ACORDAR percebo que dormi na casa de Lucy, ela está deitada ao meu lado e seus olhos se mantêm fechados e, embora eu saiba que ela não está dormindo, não movo um músculo sequer, não quero a incomodar.
As marcas de mordidas estão evidentes em seu braço, a vermelhidão um pouco mais amenizada, contudo sei que, mais cedo ou mais tarde, se tornarão enormes manchas roxas.
Dói ver o que ela está fazendo a si mesma, mas, acima de tudo, dói ainda mais saber que eu poderia ter evitado esse episódio caso contasse a sua mãe que ela mentiu ao psiquiatra. Seria válido colocar nossa amizade em risco por sua saúde... não seria?
Às vezes — não muito raramente — me pego pensando no quão egoísta eu fui, e continuo sendo, ao escolher a amizade de Lucy ao invés de seu bem estar.
Bato de leve em minha testa.
Que merda, Amelia!
Ontem fiz duas coisas que normalmente eu me negaria a fazer: deixei mamãe sozinha no hospital, sem nenhum familiar para a consolar quando acordasse e peguei um táxi, mesmo morrendo de medo destes.
Esse é o efeito que Lucille Skarsgård tem sobre mim é isso me leva a pensar que talvez, embora apenas a cogitação desta hipótese me deixe demasiadamente triste, a nossa amizade nos esteja sendo tóxica.
Não digo isso devido ao fato de que eu, visivelmente, estou a começar a me apaixonar por minha melhor amiga, digo isto pois a amizade que temos nos faz fazer coisas que, caso estivéssemos com nosso estado de espírito em equilíbrio, jamais faríamos.
Mas eu não posso deixá-la, não vou deixá-la. Já abandonei a Lucas, não posso ver o mesmo acontecendo com ela, me nego a ver o mesmo acontecendo enquanto tenho ciência de que posso ajudar. Me nego a fazer isso novamente.
Às vezes, não tão raramente, me pego a pensar em como as coisas seriam caso o universo não tivesse achado demasiadamente interessante foder com minha vida, com minha família e com meus amigos. Se realmente existe um Deus, um ser superior, ele não passa de uma criança mimada brincando de lupa com o formigueiro, no caso, a humanidade seria o formigueiro.
Houve uma época na qual eu acreditava piamente em Deus, na qual a minha fé era inabalável, uma época na qual eu costumava ir para a igreja e seguir à risca as orientações do pastor. Mas tal época ficou para trás, imersa em memórias de um passado não tão distante. Foi no exato momento em que eu vi a decadência de minha família que eu percebi o inevitável: Deus não existe, ele nunca existiu, sempre foi uma criação de nossa mente para que pudéssemos ter algum tipo de incentivo para sermos bons; para não exterminarmos à nós mesmos.
Afinal, se Ele existisse, por que deixaria que todo esse sofrimento assolasse sua criação? Por que permitiria que Lucy se machucasse, que Lucas se drogasse, que papai traísse a mamãe e que mamãe se afogasse em álcool? Ele precisaria ser, no mínimo, sádico, para assistir a tudo de camarote e não intervir; entre um criador sádico e um criador inexistente, prefiro crer no inexistente.
Lucille se remexe na cama, no entanto seus olhos se mantêm fechados, suas pálpebras estão contraídas e sua testa está franzida o que indica, claramente, que ela está os forçando a permanecer assim. Certa vez ela me disse que este é o único momento em que a voz de sua consciência a deixa em paz: quando seus olhos estão fechados.
Me levanto da cama e sigo para o banheiro; odeio vê-la assim e odeio ainda mais não ter certeza do que devo fazer para ajudá-la. Não ouso me olhar no espelho, eu sei o caos no qual me encontro, não preciso, necessariamente, ver minha imagem refletida para saber o quão caótica eu estou. Sei que, muito provavelmente, meu exterior seja um reflexo menos caótico de meu interior.
Lavo o rosto com água gelada, seis vezes seguidas, sei que o rímel está a manchar minha pele, eu sinto isso. Não sei o porquê de eu ainda insistir em me maquiar, tenho plena ciência do que acontecerá sempre em que ouso passar maquiagem em minha face: ela escorrerá por meu rosto, será lavada e manchada por minhas lágrimas. Tenho chorado muito ultimamente, mais do que qualquer pessoa sã julgaria saudável; mas chorar me faz bem.
Chorar me faz lembrar que sou humana, que estou viva e que está tudo bem permitir que seus sentimentos deixem seu corpo vez ou outra.
Torno a deitar na cama, abraçando minha amiga de maneira desengonçada, afagando seus cabelos e ela; por sua vez, não mexe um músculo sequer, tal como se estivesse imersa em uma espécie de transe do qual se nega piamente a sair. Não ouso quebrar o silêncio confortável ao chamá-la, pois sei que Lucy necessita de um tempo para digerir tudo o que aconteceu na noite anterior para que, então, possa contar a mim; não adiantaria, de nada, a pressionar para tanto, isso apenas a deixaria pior.
Admito que estou ansiosa para ir ao hospital, ver mamãe, descobrir se ela está bem..., mas Lucy me pediu ajuda, ela quer ser ajudada; diferentemente de minha mãe que parece não ligar para o fato de que está reduzindo muito sua perspectiva de vida ao fazer o que faz; ao agir como age. Porém, Lucille realmente merece os meus cuidados mais do que minha própria mãe?
Aperto meus olhos com força, afastando os pensamentos conturbados e conflitantes que estavam a rondar minha mente. Creio que seja normal estar em conflito interno quando as duas mulheres mais importantes de sua vida necessitam de sua ajuda e você tem de escolher qual ajudar. É verdade que mamãe tem me machucado desde o dia em que Lucas fez seu anúncio, ela passou a me desprezar tal como se eu fosse uma extensão de meu irmão mais velho e fosse tomar o mesmo rumo que ele; contudo, tal fato se provou incapaz de me fazer parar de amá-la.
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Silêncio - Não deixe que vejam
Fiksi RemajaVizinhança Azul de Becker Hills, um lugar pacato e extremamente cativante, repleto de famílias unidas, amizades verdadeiras e... segredos. As construções de tons azuis, bem como as cercas de madeira exageradamente brancas, escondem os mais profanos...