Ligeia (1838)

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Há nisto uma vontade que não morre.
Quem conhece os mistérios da vontade
e a sua força? Porque Deus não é mais que uma grande vontade, penetrando todas as coisas com a intensidade que lhe é própria.
O homem só cede aos anjos e só se submete por completo à morte pela fraqueza da sua pobre vontade.
— Joseph Glanville —

Juro-vos pela minha alma que não me lembro quando, nem onde vi, pela primeira vez, lady Ligeia.

Passaram-se longos anos desde esse dia e um grande sofrimento enfraqueceu a minha memória. Ou talvez aconteça agora o não poder recordá-lo, porque realmente o temperamento da minha amada, a sua rara cultura, o seu gênero de beleza tão singular e tão plácida, e a aliciante e subjugadora eloquência das suas palavras musicais e profundas, tenham penetrado no meu coração de maneira tão sub-reptícia, constante e furtiva que eu não dei conta disso.

No entanto, suponho que a encontrei pela primeira vez, e que depois voltamos a ver-nos multas outras, numa cidade antiga das margens do Reno.

Quanto à sua família, se alguma vez me falou nela, deve ter sido numa data tão longínqua que não tenho a mais pequena ideia.

Oh, Ligeia, Ligeia!

Abismado em estudos cuja natureza amortece as impressões do mundo exterior, basta-me esta palavra tão doce — Ligeia! — para evocar ante os olhos do pensamento a imagem do que já não existe. Mesmo agora, enquanto escrevo, ilumina-me como uma luz a ideia de que nunca soube o nome da família da que foi, primeiro minha amiga e minha prometida, depois minha companheira de estudos e, por fim, a esposa do meu coração.

Foi um capricho de Ligeia? Foi uma prova da força do meu afeto o eu não pedir informação alguma a esse respeito? Ou então abnegação, qualquer coisa como a oferenda romântica de um culto apaixonado? Não sei. Mas se alguma vez o espírito romântico, o pálido Ashtophet do Egito idólatra — o das asas tenebrosas — presidiu, como dizem, a bodas de sinistro augúrio, foi, com certeza, às minhas.

Apesar de tudo, há um ponto claro na minha memória. É a pessoa de Ligeia.

Era alta, um pouco delgada, e nos últimos dias essa magreza aumentou extraordinariamente. Tentaria, inutilmente, pintar a majestade, a tranquila desenvoltura do seu andar e a incompreensível leveza e elasticidade dos seus passos. Ia e vinha como uma sombra. Não me apercebia da sua entrada no meu escritório a não ser pela música querida da sua voz doce e profunda, ou quando ela colocava a sua mão de mármore sobre o meu ombro.

Quanto à beleza do rosto, nenhuma mulher a igualou jamais. Era como a visão de um sonho de ópio, uma visão aérea, enfeitiçadora, mais estranhamente celeste que as quimeras que revoluteiam nas almas submissas das filhas de Delos. No entanto, os seus traços estavam muito longe de ser vazados nesses moldes falsamente regulares que deram as obras clássicas do paganismo.

"Não existe beleza atraente — afirmou Bacon, lorde Verulam, falando com exatidão de todas as formas de beleza — sem certa estranheza nas proporções" .

Embora estivesse convencido de que os traços fisionômicos de Ligeia. não eram de uma regularidade clássica; embora me apercebesse de que a sua beleza era verdadeiramente esquisita e fortemente penetrada de estranheza, em vão me esforcei por descobrir uma irregularidade e também não consegui jamais decifrar o mistério dessa estranheza. Examinava a sua fronte alta e pálida, uma fronte sem defeito — que frias são estas palavras aplicadas a uma majestade divina! — a pele que rivalizava com o mais puro marfim, a amplidão imponente, a calma, a graciosa curvatura das fontes, a cabeleira negra como as asas de um corvo, luxuriante, ondulada, justificando a expressão homérica: cabeleira de jac into.

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