Colóquio entre Eiros e Charmion (1839)

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Eiros — Porque me chamas Eiros?

Charmion — Porque assim te chamarás de hoje em diante. Esquece igualmente o meu nome terrestre e chama-me Charmion.

Eiros — Não será isto um sonho?

Charmion — Não há sonhos onde agora estamos; mas deixemos por enquanto esses mistérios. Alegro-me de ver em ti o aspeto da vida e a lucidez da razão. As cataratas da sombra desapareceram já dos teus olhos. Anima-te e não temas nada; os dias da estupefação passaram para ti. Amanhã, eu própria quero introduzir-te nas alegrias perfeitas e nas maravilhas da tua nova existência.

Eiros — Efetivamente não sinto a mínima estupefação. A vertigem e as trevas deixaram-me de todo; já não ouço aquele barulho insensato, precipitado, terrível, semelhante ao rugido do mar. Contudo, Charmion, sobressalta-me a percepção do novo.

Charmion — Isso há de passar depressa; compreendo a comoção que sentes. Por tudo isso passei eu há cerca de dez anos terrestres e ainda não pude perder a lembrança desse alvoroço intraduzível. Mas é o teu último transe, o único pelo qual terás de passar no céu.

Eiros — No céu?

Charmion — Sim, no céu.

Eiros — Oh! meu Deus, tende piedade de mim! Sinto-me esmagada pela majestade de tudo o que me rodeia, pela revelação do desconhecido, pelo Futuro, ontem vaga conjetura, convertido hoje no Presente augusto e certo.

Charmion — Não te entregues por ora a semelhantes pensamentos; amanhã falaremos nisso. As recordações do passado acalmarão melhor a agitação do teu espírito vacilante. Não olhes em redor de ti, nem tão pouco para a frente. Olha para trás. Estou ansiosa por ouvir a narrativa do acontecimento prodigioso que te trouxe aqui. Conta-me isso. Conversemos de coisas familiares e falemos a antiga linguagem desse mundo que acaba de perecer de um modo tão e spa ntoso.

Eiros — Espantoso, sim, e real! Não é sonho.

Charmion — Os sonhos acabaram para nós. Mas conversemos, minha

Eiros. Primeiro que tudo diz-me: quando eu morri chorou-se muito por mim lá na terra?

Eiros — Oh! profundamente, Charmion. A tua família nunca mais teve alegria. Até à hora da destruição, pesou sempre sobre nós uma nuvem intensa de saudade e de melancolia.

Charmion — Fala-me dessa última hora. Além do simples fato da catástrofe, não sei de nada. Na época em que saí da fila dos humanos para entrar nos domínios da noite, parece-me que não se pressentia ainda a catástrofe que vos submergiu. Mas é verdade que eu estava pouco ao corrente da filosofia especulativa do tempo.

Eiros — Dizes bem. Aquela catástrofe era absolutamente inesperada. Entretanto acidentes análogos haviam desde muito suscitado discussões entre os nossos astrónomos. Não preciso dizer-te, minha amiga, que mesmo na época em que nos deixaste já os homens interpretavam as passagens da escritura sagrada, que falam da destruição de todas as coisas pelo fogo, como referindo-se ao globo terrestre. Mas com respeito ao agente imediato da ruína, o pensamento humano perdia-se em conjeturas desde a época em que a ciência astronômica despojara os cometas do seu terrível caráter incendiário. A insignificante densidade desses corpos havia sido evidentemente demonstrada. Tínhamo-los visto atravessar os satélites de Júpiter sem causar a mínima alteração nas órbitas desses planetas secundários. Havia muito tempo que os olhávamos como viajantes inofensivos, criações vaporosas de uma tenuidade inconcebível, incapazes de prejudicar o nosso globo maciço, mesmo no caso de um contacto. Portanto, a ideia de procurar na classe dos cometas o agente ígneo da destruição profetizada era desde longos anos considerada como inadmissível.

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