E as asas nos meus ombros já não brilhavam de noite. Acontecia-me muitas vezes, quando trabalhava até tarde, o CD de Keith Jarrett a tocar baixinho, mas não tanto que não pudesse ouvir aqueles sons que parecem gemidos, cantos, urros, com que ele acompanha as suas músicas... quando nem me lembrava de ter ido para a cama.
Acontecia-me acordar assim, com uma imagem ou um verso, vindo lá do fundo, das regiões de mim que não conheço, que não quero conhecer. Mas naquela manhã havia algo de diferente.
Abrira os olhos por um segundo e voltara a fechá-los, mas o cheiro do meu cabelo que caía sobre o rosto não era o habitual cheiro a ervas mas um cheiro a flores. Aproximei o pulso da face e senti o cheiro a rosas, um pouco acre. Então abri os olhos.O quarto não era estranho mas distante, como um quarto onde houvesse dormido quando era criança e tivesse esquecido entretanto. O papel de parede tinha pequenas flores azuis num fundo branco e os cortinados meio corridos também eram azuis. Ergui-me ligeiramente e senti uma dor no tornozelo. Soltei um gemido.
Não me lembrava de me ter magoado.
Não tinha vestida uma das t-shirts brancas de algodão mas uma camisa de noite branca, comprida.
Era muito bela, com bordado suíço à frente e três ou quatro botões.
Não era minha.
Levei a mão ao peito para sentir a estrela do colar, e isso deixou-me mais tranquila, embora a estrela parecesse diferente ao tacto.
Na mesa-de-cabeceira ao meu lado estava uma foto numa moldura de prata. Um homem de uns trinta e poucos anos, com o cabelo preto e os olhos muito azuis e um dos rostos mais atraentes que já vira. Vestia uma camisa branca, e segurava um casaco leve sobre o ombro. Parecia estar numa praça, no meio de outras pessoas, e não olhava para a câmara. Eu nunca o vira antes.
Voltei-me para a outra mesa-de-cabeceira e a princípio não reconheci a rapariga na foto. Era uma foto a preto-e-branco, e a rapariga devia estar num bosque. Tinha o cabelo preso na nuca, um casaco escuro e uma expressão melancólica no rosto.
Com um estremecimento, percebi que a rapariga era eu.Passei a mão pelos olhos, como para afastar uma visão. A angústia chegou, aquela impressão de não saber onde estava, como chegara ali. Uma cortina negra que tornava tudo muito confuso, onde estivera na véspera,onde estivera nos dias anteriores.
Alguém bateu na porta ao de leve e sentei-me na cama, tentando ignorar a dor no tornozelo. O homem era o mesmo da foto, a camisa azul-escura tornava ainda mais intenso o azul dos olhos. Fitava-me sem sorrir.
- Bom dia, Karen.
Karen?
Compreendi que tinha de estar na defensiva, não deixar transparecer a angústia que ameaçava tornar-se em medo.
Ele sentou-se na cama e pegou-me na mão.- Sentes-te melhor?
- Dói-me o tornozelo.
- O médico disse que daqui a duas ou três semanas já não sentes nada. E os arranhões também vão desaparecer em pouco tempo.
- Os arranhões?
Ele respirou fundo.
- Ainda estás muito confusa, não é verdade? Mas isso também vai passar.
Tens de estar na defensiva.
Não o deixes perceber que não te lembras de nada.
- Caí...?
Ele largou-me a mão e fiquei a olhá-la por instantes. As minhas mãos estão sempre ásperas, com algum resto de tinta nas unhas. Mas tinham um ar macio, como se tivesse posto hidratante na noite anterior, e o verniz rosa pálido era de bom gosto. Nas poucas vezes em que usava verniz, era transparente.
- Karen. Não estás a ouvir-me.
Apertei as mãos no regaço, como se quisesse escondê-las.
- Desculpa.
- Aquela ideia infantil de atravessares a cascata. As pedras são tão escorregadias que tinha de acontecer, mais tarde ou mais cedo.
A cortina abriu-se ligeiramente e vi uma rapariga a aproximar-se da cascata. O som da água, as gotas que me salpicavam o rosto, passei a língua nos lábios para as sentir. Mas tinha os lábios secos.
- Escorreguei ao atravessar a cascata...
- Suponho que foi quando voltavas.
- O que há atrás da cascata?
- Nada. Uma plataforma de rocha coberta de plantas.
- Deve ser bonito... olhar através da cascata.
- És a única a sabê-lo. Ninguém mais faz essa loucura.
- Como Alice... do outro lado do espelho.
- Alice caiu num buraco.
Mordi o lábio inferior.
- E ninguém mais a viu.
- Mas eu trouxe-te de volta.
- Sim...
A voz dele suavizou-se um pouco. - Estás muito pálida. E deves ter fome.
- Sim...
- Ontem não comeste quase nada.
Ontem...?
Tens de estar na defensiva.
- Não tinha apetite.
- Vou dizer a Emily para trazer-te o pequeno-almoço.
Inclinou-se e beijou-me nos lábios.
- Pregaste-me um bom susto. Quando te vi caída nas rochas.
- Foste procurar-me.
- Não apareceste para o jantar. E Carol tinha-te visto afastar na direcção da cascata.
Emily.
Carol.
Karen.
Se era um puzzle, tinha tão poucas peças que nada fazia sentido.
Quando ele saiu, esperei uns minutos e depois afastei a roupa e pousei os pés descalços no chão. Tentei ignorar a dor e, segurando-me nos móveis, aproximei-me do espelho da cómoda.
O cabelo estava revolto mas tinha bom aspecto, brilhava, como se o tivesse lavado na noite anterior. O rosto estava pálido, tinha alguns arranhões na face esquerda e um grande, exactamente a meio da testa, como um desenho ritual. Passei o dedo ao de leve naquela marca.
A camisa era de facto muito bonita, mas não era minha. E o colar que via entre os botões abertos também não era meu. O pendente de madrepérola estava talhado com a forma de uma estrela e o fio devia ser de ouro. Toquei-o, um pouco assustada. Nunca possuíra uma jóia tão bonita.Tinha o meu fio de prata desde criança, e comprara o pendente feito à mão num mercado de rua. Mas o facto de os dois pendentes terem a mesma forma e quase o mesmo tamanho pareceu-me naquele momento o mais alucinante de tudo.
Aproximei-me da janela e afastei completamente os cortinados. O vento abria clareiras no nevoeiro do jardim. Um jardim não muito cuidado mas onde floriam maciços de rosas. Um muro feito de pedras sobrepostas, um portão ao longe, entre as árvores.
Voltei para a cama, tremendo de frio. Meti-me debaixo da roupa e percebi que tinha os punhos cerrados.
Não fazia a menor ideia de em que parte do mundo me encontrava.
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WHO IS KAREN?
RomanceUma mulher prestes a fazer 25 anos acorda numa cama que não reconhece, numa casa que não lhe parece íntima, entre pessoas que a conhecem mas afirmam entender sua confusão momentânea. Chama-se, ou pelo menos é como a chamam, Karen. Ela é casada com...