16 - O baile

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Estava um dia bonito, sol e nevoeiro, alternadamente. Eu acordara cedo com os beijos dele.
   
— Feliz aniversário, princesa.

Não é o meu aniversário, pensei absurdamente, há dois meses que tenho vinte e cinco anos, fiz dois dias antes de vir para aqui, e escolhi um vestido preto de alças, e sandálias de salto alto, e deixei o cabelo solto. E usava o meu colar de prata com uma estrela. E saí com amigos, e ofereceram-me flores, e bebemos muito.
Acordei num quarto desconhecido, voltei para casa a pé com um casaco emprestado sobre os ombros e um ramo de flores amachucadas na mão.

Os pequenos rituais: no Natal convidava alguns amigos e ficávamos a beber e a pintar até de madrugada. No princípio da primavera, havia uma jarra de narcisos amarelos, sempre frescos, na mesa do canto, debaixo de um quadro azul. Em Julho, duas semanas na praia, um biquíni minúsculo, um novo namorado.

Os rituais de trabalho: quando fizera alguns estudos de uma coisa, uma paisagem distante, uma casa em ruínas, um curso de água, hera num muro, deixava-os e lia poesia ou Henry James, e ouvia música, e uma noite acontecia, nunca era deliberado, não o momento, punha uma tela no cavalete ou sobre a mesa, e Keith Jarrett a tocar, e acontecia. Um outro estado de consciência.
Sim, era algo de religioso, uma religião antiga feita da ligação com as coisas, de metamorfoses, e sinais, e desenhos tribais no rosto.

Nessas noites, eu não estava ali, não existia tempo, penso que depois lavava as mãos e vestia uma camisola e metia-me na cama, às vezes já era de madrugada. E no dia seguinte olhava para o trabalho que as minhas mãos tinham feito e era surpreendente e familiar.
Sim, eu reconhecia o meu trabalho quando era bom. Acho que é a forma de sabermos quando o nosso trabalho é bom, quando o reconhecemos.

Eu precisava de agarrar-me a essas memórias, revivê-las muitas vezes, porque sentia um desejo profundo de esquecer, seria fácil transformar-me em Karen, ficar com ele e ouvir Mark Eitzel...

Streets with too many footprints raindrops and heartbeats, though Noah wouldn’t want me, you won’t let me drown, I don’t need to see you, I just need to feel you…

Tomei um longo banho e sequei o cabelo, vesti uns jeans e uma camisola. Não me apetecia ajudar nos preparativos e ninguém mo pediu. Carol chegara cedo e havia muitas flores, não fazia a menor ideia de onde tinham vindo. Passei a manhã no jardim, depois fui à cozinha comer qualquer coisa, não tínhamos feito almoço, e fechei-me no quarto a ler. Mas comecei a vestir-me muito mais cedo do que era necessário.

O vestido vermelho que Emily engomara na noite anterior, não me lembrava de alguma vez ter tido um vestido vermelho. E a rapariga no espelho sorria encantada, enquanto tentava com mãos pouco hábeis prender o cabelo aos lados com dois pentes de prata.
Saí do quarto depois de um último olhar ao espelho. A princesa na terceira noite. O corredor era muito comprido, como nos primeiros dias quando abria a porta depois de eles saírem e ficava a segui-los com o olhar. Desci as escadas, com a vaga sensação de que havia um retrato na parede, uma mulher parecida comigo e com um vestido igual ao meu.

Há duas histórias: a luta do anjo bom e do anjo caído à beira do precipício e a rapariga que se apaixona por um homem na sombra de outra mulher.

Ele esperava-me no fundo da escada, nunca o vira de fato, ainda menos um fato de cerimónia, mas parecia ter nascido para os usar. Segurou-me na mão e disse estás muito bonita, mas como se pensasse noutra coisa.

A sala estava belíssima, os móveis brilhantes, as flores dispostas com gosto, a música que ele escolhera. As pessoas começaram a chegar, conhecia algumas de vista, o que me tranquilizou um pouco. Não eram muitas, menos de vinte, e tinham um ar amigável e natural.

WHO IS KAREN?Onde histórias criam vida. Descubra agora