6 - Nova perspectiva da casa

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Naquele dia, tinham-me autorizado a descer para o pequeno-almoço. Depois de um banho, e o gel cheirava a flores, claro, o cabelo ainda um pouco húmido, Emily escolheu para mim uma saia azul, estreita, e um camiseiro branco. Voltei a pôr o colar de madrepérola que tinha tirado antes do banho, é uma bela jóia, a estrela talhada com carinho.

Eu agora fazia todas as perguntas que me ocorriam a Emily, como se fosse natural ter-me esquecido das coisas mais simples.

— Foi um presente de Alan antes de casarem.

Eu nunca tirava o meu fio de prata do pescoço, mas este era tão delicado que tinha todo o cuidado com ele, creio que começava a amá-lo.

Emily ajudou-me a descer as escadas. Era estranho descobrir a casa assim, não tinha qualquer recordação de chegar ali, de atravessar o vestíbulo e subir os degraus que cheiravam a cera. Havia uma janela grande em baixo e estava aberta, deixando entrar o cheiro da manhã, da chuva da noite anterior.
Tomávamos o pequeno-almoço na cozinha, e mais uma vez a porta aberta deu-me a sensação de que a casa era atravessada pelo ar e os cheiros que eu não imaginara fossem permitidos numa acolhedora casa de campo.
Alan estava encostado à janela, com uma chávena de café na mão. Olhou para mim e depois para Emily com aprovação, e isso fez-me sentir gelada, eu tinha o aspecto que era suposto ter. O cão entrou pela porta que dava para o jardim, cheirou-me e deixou-me acariciá-lo.

— Ele já me conhece.

— Ele conheceu-te durante quase toda a sua vida.

Mordi o lábio. Fora um deslize e tinha de ter cuidado. Não que eu pensasse, nem por um segundo, que eles acreditavam que era Karen. Era como se representássemos uma peça, e tinha de desempenhar o meu papel. Eu sentira, desde o princípio, que tinha de defender-me, que corria perigo. Foi um pequeno-almoço alegre, café para Alan e para mim, chá para Emily. E torradas acabadas de fazer, e aqueles deliciosos scones que eram uma das especialidades de Emily.
Quando nos levantámos, disse sem me dirigir a ninguém em particular:

— Gostava de ir ao jardim.

— Vou buscar um casaco.

Emily voltou daí a instantes com um casaco azul e ele ajudou-me a vesti-lo. Fechou os botões até ao pescoço. Havia uma familiaridade nos seus gestos, como se o tivesse feito muitas vezes.

Saímos com o cão. Embora o Sol brilhasse tenuemente, fazia frio lá fora. Aquela parte do jardim estava cuidada, uma pequena horta, algumas árvores de fruto protegidas por um muro. Os pássaros que me habituara a ver da janela, alciões, estorninhos, uma gralha em cima do muro.
Fiz algo que desejava fazer há muito tempo, voltei-me e olhei para cima, para a casa, cinzenta e com rosas trepadeiras. Havia algumas janelas abertas, o que lhe dava um ar menos sombrio.
Dei a volta à casa, e ele seguiu-me sem dizer uma palavra. A fachada estava coberta de vinha virgem, as últimas folhas muito vermelhas. Tinha um ar nobre e esquecido, uma única janela aberta, a porta aonde se chegava subindo alguns degraus com ramos de vinha à frente.

— É tão bonita!

Ele estava junto a mim. Era mais alto do que eu, mas não muito. O sorriso que mal conhecia tornava-o ainda mais atraente.

— Sempre gostaste dela.

— Foi por isso que casei contigo. Pela tua fortuna.

— Eu não tenho nada além desta casa. Fui eu que casei contigo pela tua fortuna.

Perguntei-me se estaria a ser irónico. A sua expressão era inescrutável.

Eu sou rica?

— Bem, sê-lo-ás daqui a umas semanas. Quando fizeres vinte e cinco anos.

Olhei para o outro lado do portão fechado, para a estrada onde não se viam casas, onde raramente passava um automóvel.

— Então casaste com uma herdeira.

— Sim, preciso de dinheiro para continuar a escrever.

Desta vez não contive um sorriso.

— Sim, tu farias isso…

— Que raio de escritor seria eu se não fosse capaz de roubar ou até matar pelos meus livros? Casar com uma herdeira não é nada.

— Estás a escrever?

— Há uns dias acusaste-me de não fazer nada. De contar com o teu dinheiro para não fazer nada o resto da vida.

— Quando foi isso?

A voz dele alterou-se ligeiramente.

— Não brinques comigo, Karen.

A minha voz também se alterou. Era quase feroz.

— Não me lembro. Sabes que há coisas que esqueci.

— Sim. Emily disse-me.

— Emily…

Senti um pouco de amargura. Claro que Emily lhe era fiel. Como pudera pensar…

— Foi no dia do acidente.

— O acidente na cascata.

— Sim.

— Então estavas furioso comigo.

— Seria capaz de matar-te naquele dia.

— Mas não o fizeste.

— Tu estás aqui, minha querida.

Estávamos imóveis em frente um do outro.

Ele não se incomodara em vestir um casaco ou uma camisola sobre a camisa branca e havia algo de familiar, o homem de olhos azuis e camisa branca, a rapariga de ar sombrio com o seu casaco escuro. Por um momento senti o desejo absurdo de ter o cabelo apanhado na nuca em vez de solto sobre os ombros.

— Sim, eu estou aqui – disse baixinho.

Mas onde estava Karen?

O Sol desaparecera sem que me desse conta e o nevoeiro aproximava-se. Já não víamos o fundo do jardim, o cantar dos pássaros tornara-se longínquo. O nevoeiro cheirava a rosas.
Estava muito frio agora. Levei a mão ao pescoço e ele pareceu compreender.

— Vamos entrar. Ainda estás fraca.

Rodeou-me os ombros com o braço.

— Apoia-te em mim.

— Não tenho dores.

Mas encostei-me a ele.

— Acendi a lareira da biblioteca. Podes passar a manhã lá.

— Com os meus livros.

— Com os teus livros.

— E tu vais escrever?

Ele sorriu.

— Carol não vem hoje. Vou preparar o almoço.

— Tu?

— Também esqueceste as rotinas da casa – disse com ironia.

Tentei sorrir.

— Não…

— Aqui todos trabalhamos. Quando estiveres um pouco melhor, tu também.

— Eu não sei fazer nada.

— Era o que dizias no princípio.

— Mas não deu resultado?

— Claro que não.

Demos a volta à casa com o Sam a correr à nossa frente. Emily esperava-nos na porta da cozinha, com um ar preocupado no rosto pálido.

WHO IS KAREN?Onde histórias criam vida. Descubra agora