Naquele dia, tinham-me autorizado a descer para o pequeno-almoço. Depois de um banho, e o gel cheirava a flores, claro, o cabelo ainda um pouco húmido, Emily escolheu para mim uma saia azul, estreita, e um camiseiro branco. Voltei a pôr o colar de madrepérola que tinha tirado antes do banho, é uma bela jóia, a estrela talhada com carinho.
Eu agora fazia todas as perguntas que me ocorriam a Emily, como se fosse natural ter-me esquecido das coisas mais simples.
— Foi um presente de Alan antes de casarem.
Eu nunca tirava o meu fio de prata do pescoço, mas este era tão delicado que tinha todo o cuidado com ele, creio que começava a amá-lo.
Emily ajudou-me a descer as escadas. Era estranho descobrir a casa assim, não tinha qualquer recordação de chegar ali, de atravessar o vestíbulo e subir os degraus que cheiravam a cera. Havia uma janela grande em baixo e estava aberta, deixando entrar o cheiro da manhã, da chuva da noite anterior.
Tomávamos o pequeno-almoço na cozinha, e mais uma vez a porta aberta deu-me a sensação de que a casa era atravessada pelo ar e os cheiros que eu não imaginara fossem permitidos numa acolhedora casa de campo.
Alan estava encostado à janela, com uma chávena de café na mão. Olhou para mim e depois para Emily com aprovação, e isso fez-me sentir gelada, eu tinha o aspecto que era suposto ter. O cão entrou pela porta que dava para o jardim, cheirou-me e deixou-me acariciá-lo.— Ele já me conhece.
— Ele conheceu-te durante quase toda a sua vida.
Mordi o lábio. Fora um deslize e tinha de ter cuidado. Não que eu pensasse, nem por um segundo, que eles acreditavam que era Karen. Era como se representássemos uma peça, e tinha de desempenhar o meu papel. Eu sentira, desde o princípio, que tinha de defender-me, que corria perigo. Foi um pequeno-almoço alegre, café para Alan e para mim, chá para Emily. E torradas acabadas de fazer, e aqueles deliciosos scones que eram uma das especialidades de Emily.
Quando nos levantámos, disse sem me dirigir a ninguém em particular:— Gostava de ir ao jardim.
— Vou buscar um casaco.
Emily voltou daí a instantes com um casaco azul e ele ajudou-me a vesti-lo. Fechou os botões até ao pescoço. Havia uma familiaridade nos seus gestos, como se o tivesse feito muitas vezes.
Saímos com o cão. Embora o Sol brilhasse tenuemente, fazia frio lá fora. Aquela parte do jardim estava cuidada, uma pequena horta, algumas árvores de fruto protegidas por um muro. Os pássaros que me habituara a ver da janela, alciões, estorninhos, uma gralha em cima do muro.
Fiz algo que desejava fazer há muito tempo, voltei-me e olhei para cima, para a casa, cinzenta e com rosas trepadeiras. Havia algumas janelas abertas, o que lhe dava um ar menos sombrio.
Dei a volta à casa, e ele seguiu-me sem dizer uma palavra. A fachada estava coberta de vinha virgem, as últimas folhas muito vermelhas. Tinha um ar nobre e esquecido, uma única janela aberta, a porta aonde se chegava subindo alguns degraus com ramos de vinha à frente.— É tão bonita!
Ele estava junto a mim. Era mais alto do que eu, mas não muito. O sorriso que mal conhecia tornava-o ainda mais atraente.
— Sempre gostaste dela.
— Foi por isso que casei contigo. Pela tua fortuna.
— Eu não tenho nada além desta casa. Fui eu que casei contigo pela tua fortuna.
Perguntei-me se estaria a ser irónico. A sua expressão era inescrutável.
— Eu sou rica?
— Bem, sê-lo-ás daqui a umas semanas. Quando fizeres vinte e cinco anos.
Olhei para o outro lado do portão fechado, para a estrada onde não se viam casas, onde raramente passava um automóvel.
— Então casaste com uma herdeira.
— Sim, preciso de dinheiro para continuar a escrever.
Desta vez não contive um sorriso.
— Sim, tu farias isso…
— Que raio de escritor seria eu se não fosse capaz de roubar ou até matar pelos meus livros? Casar com uma herdeira não é nada.
— Estás a escrever?
— Há uns dias acusaste-me de não fazer nada. De contar com o teu dinheiro para não fazer nada o resto da vida.
— Quando foi isso?
A voz dele alterou-se ligeiramente.
— Não brinques comigo, Karen.
A minha voz também se alterou. Era quase feroz.
— Não me lembro. Sabes que há coisas que esqueci.
— Sim. Emily disse-me.
— Emily…
Senti um pouco de amargura. Claro que Emily lhe era fiel. Como pudera pensar…
— Foi no dia do acidente.
— O acidente na cascata.
— Sim.
— Então estavas furioso comigo.
— Seria capaz de matar-te naquele dia.
— Mas não o fizeste.
— Tu estás aqui, minha querida.
Estávamos imóveis em frente um do outro.
Ele não se incomodara em vestir um casaco ou uma camisola sobre a camisa branca e havia algo de familiar, o homem de olhos azuis e camisa branca, a rapariga de ar sombrio com o seu casaco escuro. Por um momento senti o desejo absurdo de ter o cabelo apanhado na nuca em vez de solto sobre os ombros.
— Sim, eu estou aqui – disse baixinho.
Mas onde estava Karen?
O Sol desaparecera sem que me desse conta e o nevoeiro aproximava-se. Já não víamos o fundo do jardim, o cantar dos pássaros tornara-se longínquo. O nevoeiro cheirava a rosas.
Estava muito frio agora. Levei a mão ao pescoço e ele pareceu compreender.— Vamos entrar. Ainda estás fraca.
Rodeou-me os ombros com o braço.
— Apoia-te em mim.
— Não tenho dores.
Mas encostei-me a ele.
— Acendi a lareira da biblioteca. Podes passar a manhã lá.
— Com os meus livros.
— Com os teus livros.
— E tu vais escrever?
Ele sorriu.
— Carol não vem hoje. Vou preparar o almoço.
— Tu?
— Também esqueceste as rotinas da casa – disse com ironia.
Tentei sorrir.
— Não…
— Aqui todos trabalhamos. Quando estiveres um pouco melhor, tu também.
— Eu não sei fazer nada.
— Era o que dizias no princípio.
— Mas não deu resultado?
— Claro que não.
Demos a volta à casa com o Sam a correr à nossa frente. Emily esperava-nos na porta da cozinha, com um ar preocupado no rosto pálido.
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WHO IS KAREN?
RomanceUma mulher prestes a fazer 25 anos acorda numa cama que não reconhece, numa casa que não lhe parece íntima, entre pessoas que a conhecem mas afirmam entender sua confusão momentânea. Chama-se, ou pelo menos é como a chamam, Karen. Ela é casada com...