Algo de estranho acontecera e não era só amor, e desejo, mas uma nova familiaridade com as coisas.
As minhas mãos pareciam saber instintivamente onde as pequenas coisas se encontravam, a minha roupa interior nas gavetas, os livros nas prateleiras, as plantas escondidas no jardim. Acho que até conhecia o lugar onde estavam os bolbos que começariam a deitar rebentos no fim do inverno, no princípio da primavera.
Quando acordava de manhã e ele ainda estava na cama, acariciava devagar o seu cabelo. Ele voltava-se e fitávamo-nos com gravidade, o nosso amor era grave, quase soturno. A nossa mesa de trabalho, as nossas pinturas nas paredes. Perguntava a mim mesma como ficariam as minhas pinturas ali, uma muito leve, luminosa, algo a ver com água e nenúfares na parede do quarto, umas mais escuras na biblioteca, por cima da lareira, junto à janela, a neve suja, a corrente de um ribeiro nas traseiras da casa onde eu crescera.
Tinha um novo prazer em explorar o guarda-roupa e escolher peças bonitas, em experimentar pentes de prata para afastar o cabelo do rosto, até usava dois brincos minúsculos que ficavam bem com o colar. Tocava na estrela de madrepérola com segurança, o colar era belíssimo e era meu, ele tinha dado.
Por vezes olhava para a rapariga da fotografia com sentimentos ambivalentes, ela era mais bonita do que eu, porque estava ela tão triste, o que sabia que eu ignorava? E se ela voltasse?
Era uma ideia perturbadora, vê-la abrir o portão, atravessar o jardim, com o seu casaco escuro e o cabelo preso na nuca, talvez o Sam corresse ao seu encontro para lhe dar as boas-vindas. Mas tinha a sensação de que aquilo não poderia acontecer enquanto eu estivesse ali.
Era uma realidade nova, com novas leis, e estava a aprendê-las aos poucos, enquanto eu estivesse ali ela não poderia voltar.
Eles agora deixavam-me conduzir; a ideia de que estava prisioneira era completamente absurda. Gostava de ir à aldeia fazer compras, as pessoas reconheciam-me, mas nunca falavam muito, eu era uma mulher que pedia o silêncio, dissera ele, eu não compreendia mas acreditava nele.Algumas vezes sentava-me no muro à beira-mar, na companhia das gaivotas. Nunca vi pessoas na praia, o mar parecia gelado e fundo, mesmo junto à costa. A hipótese de nadar ali fazia-me estremecer.
A minha pele estava levemente bronzeada, embora o Sol não brilhasse durante muito tempo, os meus lábios estavam mais rosados, mesmo quando não usava gloss.
Evitava a rua solitária no fim da aldeia, porque me fazia recordar.
Alan e eu caminhávamos ao longo da rua, qualquer coisa que ele dissera, qualquer coisa que eu compreendera, e se fugira de alguém, fora dele. Não havia mais ninguém. Imagining… not, remembering… estava a tornar-se difícil separar o que imaginava do que recordava.
Entrava na pastelaria para tomar um café e para estar no meio de pessoas. Folheava um jornal, mas as notícias não me interessavam em absoluto. Depois fazia as compras, e havia um momento em que sentia a falta dele e só me apetecia voltar para casa. Queria vê-lo chegar do seu passeio com o Sam, ouvir a sua voz, deixar que ele me tocasse. Como gostava das nossas noites naquele quarto tão frio.
Uma manhã voltei tão cedo que ele ainda estava no jardim a consertar uma vedação. Parei o automóvel perto da casa e ele aproximou-se com o Sam nos tornozelos.
— Renunciaste ao teu passeio?
— Qual passeio?
Ele sorriu.
— Ao longo da praia. Nas ruazinhas do porto.
De novo aquela perturbação.
O que me dissera ele naquela rua, o que compreendera eu naquela rua, e porque tivera medo.
Não eu, Karen.
Havia momentos em que quase nos confundíamos uma com a outra.
— A última rua… Sim.
— Tem algo de assustador.
Imagining… not, remembering.
Sentei-me nas raízes de uma velha árvore. Alguns estorninhos levantaram voo e foram pousar nos ramos mais altos. Olhei para cima, para as folhas que se moviam lentamente.
— Houve alguma vez um baloiço aqui?
Ele franziu o sobrolho.
— Sim, quando eu era pequeno. Como sabes?
— Deves ter-mo dito.
— É possível.
Reclinei-me para trás. Sim, o movimento de um baloiço.
— A nossa mesa de trabalho.
— Como?
— Acho que também havia um baloiço na minha casa quando era pequena.
— Ou no colégio.
— O colégio?
— O colégio interno.
As folhas da árvore murmuravam. Sempre tentei sentir a música das coisas. A luz dos candeeiros numa rua de noite, as flores a despontarem num parque, o sol a entrar pelo vitral de uma igreja.
As minhas recordações de infância não eram muito claras, os meus pais e a nossa casa, o jardim das traseiras onde passava um ribeiro. Recordações doces, os livros que o meu pai me trazia de Londres, aonde ia todos os dias trabalhar, os pãezinhos quentes quando chegava da escola a meio da tarde. Uma escola dos arredores, a dez minutos de casa, só quando estava a chover apanhava o autocarro para regressar. Os gatos, lembrava-me dos gatos, as ninhadas e o gatinho que era meu, era sempre o mesmo, um tigre pequenino que crescia e vivia alguns anos, e que voltava, que voltava sempre.
— Eu nunca andei num colégio interno.
Alan olhou-me com impaciência e acendeu um cigarro. Não costumava fumar de manhã.
— Que história é essa? Falaste tantas vezes do colégio, de como o detestaste no primeiro ano.
Endireitei-me bruscamente.
— Sim… isso foi mais tarde. Disse-te que o detestava?
— A princípio. Depois arranjaste amigas, tornaste-te uma boa aluna, não eras muito boa nos jogos.
Senti vontade de rir. Só conhecia os colégios internos dos livros que lia em criança. Os meus pais nunca aceitariam a ideia de me mandar para longe deles.
— Não me digas que também passava as férias no colégio.
— Creio que aconteceu algumas vezes. Quando os teus pais estavam a viajar.
Acho que os meus pais nunca saíram da Inglaterra. Nas férias alugavam um bungalow perto do mar ou nas montanhas.— Nunca te falei do riacho que passava no quintal das traseiras da minha casa?
— Creio que não.
— Era lá que apareciam as primeiras campainhas brancas, os primeiros narcisos amarelos. E no outono ficava cheio de folhas… E no inverno a água corria entre a neve. E eu via as estações passarem…
O nevoeiro chegava, começava a envolver-nos.
— E tu brincavas aqui – murmurei.
— Sim.
— Perdeste-te alguma vez?
— No jardim?
— Sim.
— Quando era muito pequeno. Tiveram de vir procurar-me com uma lanterna.
A ideia divertiu-nos aos dois.
— Vamos entrar?
— Emily vai ficar furiosa comigo.
— Porquê?
— Não fiz todas as compras.
— Tens uma boa desculpa?
— Não queria estar longe de ti.
Ele não retribuiu o sorriso. Passou-me o braço pelos ombros e entrámos em casa.
VOCÊ ESTÁ LENDO
WHO IS KAREN?
RomanceUma mulher prestes a fazer 25 anos acorda numa cama que não reconhece, numa casa que não lhe parece íntima, entre pessoas que a conhecem mas afirmam entender sua confusão momentânea. Chama-se, ou pelo menos é como a chamam, Karen. Ela é casada com...