13 - A familiaridade das coisas

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Algo de estranho acontecera e não era amor, e desejo, mas uma nova familiaridade com as coisas.

As minhas mãos pareciam saber instintivamente onde as pequenas coisas se encontravam, a minha roupa interior nas gavetas, os livros nas prateleiras, as plantas escondidas no jardim. Acho que até conhecia o lugar onde estavam os bolbos que começariam a deitar rebentos no fim do inverno, no princípio da primavera.

Quando acordava de manhã e ele ainda estava na cama, acariciava devagar o seu cabelo. Ele voltava-se e fitávamo-nos com gravidade, o nosso amor era grave, quase soturno. A nossa mesa de trabalho, as nossas pinturas nas paredes. Perguntava a mim mesma como ficariam as minhas pinturas ali, uma muito leve, luminosa, algo a ver com água e nenúfares na parede do quarto, umas mais escuras na biblioteca, por cima da lareira, junto à janela, a neve suja, a corrente de um ribeiro nas traseiras da casa onde eu crescera.

Tinha um novo prazer em explorar o guarda-roupa e escolher peças bonitas, em experimentar pentes de prata para afastar o cabelo do rosto, até usava dois brincos minúsculos que ficavam bem com o colar. Tocava na estrela de madrepérola com segurança, o colar era belíssimo e era meu, ele tinha dado.

Por vezes olhava para a rapariga da fotografia com sentimentos ambivalentes, ela era mais bonita do que eu, porque estava ela tão triste, o que sabia que eu ignorava? E se ela voltasse?

Era uma ideia perturbadora, vê-la abrir o portão, atravessar o jardim, com o seu casaco escuro e o cabelo preso na nuca, talvez o Sam corresse ao seu encontro para lhe dar as boas-vindas. Mas tinha a sensação de que aquilo não poderia acontecer enquanto eu estivesse ali.
Era uma realidade nova, com novas leis, e estava a aprendê-las aos poucos, enquanto eu estivesse ali ela não poderia voltar.
Eles agora deixavam-me conduzir; a ideia de que estava prisioneira era completamente absurda. Gostava de ir à aldeia fazer compras, as pessoas reconheciam-me, mas nunca falavam muito, eu era uma mulher que pedia o silêncio, dissera ele, eu não compreendia mas acreditava nele.

Algumas vezes sentava-me no muro à beira-mar, na companhia das gaivotas. Nunca vi pessoas na praia, o mar parecia gelado e fundo, mesmo junto à costa. A hipótese de nadar ali fazia-me estremecer.

A minha pele estava levemente bronzeada, embora o Sol não brilhasse durante muito tempo, os meus lábios estavam mais rosados, mesmo quando não usava gloss.

Evitava a rua solitária no fim da aldeia, porque me fazia recordar.

Alan e eu caminhávamos ao longo da rua, qualquer coisa que ele dissera, qualquer coisa que eu compreendera, e se fugira de alguém, fora dele. Não havia mais ninguém. Imaginingnot, remembering… estava a tornar-se difícil separar o que imaginava do que recordava.

Entrava na pastelaria para tomar um café e para estar no meio de pessoas. Folheava um jornal, mas as notícias não me interessavam em absoluto. Depois fazia as compras, e havia um momento em que sentia a falta dele e só me apetecia voltar para casa. Queria vê-lo chegar do seu passeio com o Sam, ouvir a sua voz, deixar que ele me tocasse. Como gostava das nossas noites naquele quarto tão frio.

Uma manhã voltei tão cedo que ele ainda estava no jardim a consertar uma vedação. Parei o automóvel perto da casa e ele aproximou-se com o Sam nos tornozelos.

— Renunciaste ao teu passeio?

— Qual passeio?

Ele sorriu.

— Ao longo da praia. Nas ruazinhas do porto.

De novo aquela perturbação.

O que me dissera ele naquela rua, o que compreendera eu naquela rua, e porque tivera medo.

Não eu, Karen.

Havia momentos em que quase nos confundíamos uma com a outra.

— A última rua… Sim.

— Tem algo de assustador.

Imagining… not, remembering.

Sentei-me nas raízes de uma velha árvore. Alguns estorninhos levantaram voo e foram pousar nos ramos mais altos. Olhei para cima, para as folhas que se moviam lentamente.

— Houve alguma vez um baloiço aqui?

Ele franziu o sobrolho.

— Sim, quando eu era pequeno. Como sabes?

— Deves ter-mo dito.

— É possível.

Reclinei-me para trás. Sim, o movimento de um baloiço.

— A nossa mesa de trabalho.

— Como?

— Acho que também havia um baloiço na minha casa quando era pequena.

— Ou no colégio.

— O colégio?

— O colégio interno.

As folhas da árvore murmuravam. Sempre tentei sentir a música das coisas. A luz dos candeeiros numa rua de noite, as flores a despontarem num parque, o sol a entrar pelo vitral de uma igreja.

As minhas recordações de infância não eram muito claras, os meus pais e a nossa casa, o jardim das traseiras onde passava um ribeiro. Recordações doces, os livros que o meu pai me trazia de Londres, aonde ia todos os dias trabalhar, os pãezinhos quentes quando chegava da escola a meio da tarde. Uma escola dos arredores, a dez minutos de casa, só quando estava a chover apanhava o autocarro para regressar. Os gatos, lembrava-me dos gatos, as ninhadas e o gatinho que era meu, era sempre o mesmo, um tigre pequenino que crescia e vivia alguns anos, e que voltava, que voltava sempre.

— Eu nunca andei num colégio interno.

Alan olhou-me com impaciência e acendeu um cigarro. Não costumava fumar de manhã.

— Que história é essa? Falaste tantas vezes do colégio, de como o detestaste no primeiro ano.

Endireitei-me bruscamente.

— Sim… isso foi mais tarde. Disse-te que o detestava?

— A princípio. Depois arranjaste amigas, tornaste-te uma boa aluna, não eras muito boa nos jogos.

Senti vontade de rir. Só conhecia os colégios internos dos livros que lia em criança. Os meus pais nunca aceitariam a ideia de me mandar para longe deles.

— Não me digas que também passava as férias no colégio.

— Creio que aconteceu algumas vezes. Quando os teus pais estavam a viajar.
Acho que os meus pais nunca saíram da Inglaterra. Nas férias alugavam um bungalow perto do mar ou nas montanhas.

— Nunca te falei do riacho que passava no quintal das traseiras da minha casa?

— Creio que não.

— Era lá que apareciam as primeiras campainhas brancas, os primeiros narcisos amarelos. E no outono ficava cheio de folhas… E no inverno a água corria entre a neve. E eu via as estações passarem…

O nevoeiro chegava, começava a envolver-nos.

— E tu brincavas aqui – murmurei.

— Sim.

— Perdeste-te alguma vez?

— No jardim?

— Sim.

— Quando era muito pequeno. Tiveram de vir procurar-me com uma lanterna.

A ideia divertiu-nos aos dois.

— Vamos entrar?

— Emily vai ficar furiosa comigo.

— Porquê?

— Não fiz todas as compras.

— Tens uma boa desculpa?

— Não queria estar longe de ti.

Ele não retribuiu o sorriso. Passou-me o braço pelos ombros e entrámos em casa.

WHO IS KAREN?Onde histórias criam vida. Descubra agora