11 - Os anjos

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Eu sentira que a galeria não ficava realmente em Londres, que a encontraria se vivesse em Paris, ou numa pequena cidade italiana.

Um dia estava à espera dele, tinha passado a mão indecisa no anjo que saía da parede, na placa de madeira onde ele mesmo talhara as palavras.

Antiques old and new.

As palavras eram misteriosas, tudo ali era misterioso. Começou a chover, uma chuva fina que em poucos minutos se tornou uma chuva forte. Vi-o chegar, ele puxara a gabardina para cima da cabeça, sem despir os braços, um homem velho com calças e botas velhas, parecia não vestir mais nada debaixo da gabardina. Um homem pobre, um vagabundo, alguém que dormia num banco de jardim ou num portal e que ouvia vozes, como Joana d’Arc. Mas agora via o seu rosto que se tornara tão familiar e tão querido, parecia-se um pouco com Giacometti, e as suas mãos, talvez as mãos de Giacometti também fossem assim, longas e indecifráveis.
Ele sorriu-me.

— Há uns tempos que não aparecias. — Tenho andado por aí… — Faz parte do trabalho.

Pensei que ele nem sabia onde eu morava, nunca mo perguntara. E, mais estranho ainda, eu também não sabia onde ele morava. Talvez num quarto alugado perto dali. Talvez numa boa casa, com uma biblioteca e uma lareira nos quartos.

— Trouxe o almoço.

— É uma ocasião especial?

— Não.

Ele abriu a porta e acendeu algumas luzes, quase não entrava claridade da rua. Mostrou-me um pequeno ícone de madeira que comprara dias antes, tinha falhas mas era algo de precioso, temos de encontrar um lugar para ele, disse.
Encontrámos, perto da montra, onde o candeeiro aceso da rua fazia passar uma luz esbranquiçada que despertava um brilho amarelo, como poalha de ouro, nos mantos dos anjos.
Sentámo-nos e servi a comida, gostava de cozinhar para ele, tinha a impressão de que se alimentava mal, de que se esquecia de comer. Bebemos vinho e eu não lhe disse que era o meu aniversário, que quisera festejar com ele.

Passámos a tarde juntos.

A galeria estava aberta e quando entrava alguém ele ia ao seu encontro, o resto do tempo ficávamos simplesmente ali, a nossa mesa de trabalho, ele modelava uma pequena figura numa pasta terracota, olhava para o meu rosto, para o meu peito, mas nunca me pedia para ficar imóvel, eu desenhava o que via à minha volta, o quadro que representava uma rua deserta que existe nos sonhos e ninguém espera realmente encontrar, o ícone que acabara de chegar ali e já pertencia, a rua lá fora e as sombras negras dos transeuntes. Ele pegava num lápis e alterava uma linha num dos meus desenhos, acentuava outra, e era assim que devia ser.

Foi ele que me falou dos quatro anjos que abriram o pergaminho dos céus no princípio do mundo. Eles voltavam a encontrar-se, dois, três, um dia encontrar-se-iam os quatro, e esse encontro salvaria o mundo.
Ele dizia com toda a naturalidade que me conhecia desde o princípio do mundo, dizia coisas que me faziam sentir medo, eu lera num livro de Iris Murdoch que quando chegamos demasiado perto os deuses não nos deixam passar.

Voltava para casa à noite e o meu sótão parecia um lugar sagrado, eu limitava-me a passar de um lugar sagrado para outro, quase não me dava conta de ter percorrido alguma distância, de ter percorrido ruas ou pontes, surpreendia-me ver o cabelo molhado, o rosto molhado.

Nós partilhávamos uma estranha religião, e, pensando nisso, ele pareciase com um padre de uma religião estranha e bela.

O seu rosto, a sua forma de vestir-se e de falar.

Uma pancada na porta trouxe-me de volta ao quarto, à casa. Emily vinha ver se eu estava bem, se ainda tinha dores no tornozelo. Foi o que disse com a sua voz mais neutra, mas os seus olhos procuravam qualquer coisa no meu rosto.

— Em que estava a pensar?

Então agora tinham medo dos meus pensamentos.

— Numa galeria em Londres, onde passei uma ou duas vezes.

— Entrou.

O meu corpo crispou-se, na defensiva.

— Não… só a vi de fora. Havia anjos na parede…

Ela olhava pela janela.

— A Karen sempre gostou de explorar galerias.

— Sim.

— Acho que encontrava quadros que não vinham nos catálogos.

— Que mais ninguém via?

— Talvez.

— O meu pai levava-me às galerias quando era muito pequena.

Ela franziu a testa.

— Não creio.

— Porquê?

— Não é essa a ideia que tenho dele.

Eu sorri, desafiante. Era algo de que me lembrava claramente. O meu pai a levar-me pela mão de uma sala para outra, a mostrar-me os quadros, a pegar-me ao colo para os ver melhor. O tigre e os nenúfares e duas meninas vestidas de branco e amarelo que perseguiam borboletas num jardim. E depois comprava-me dois ou três postais na loja, uma esferográfica, um caderno com a reprodução de um quadro na capa.

Ninguém me poderia tirar isso.

Ou poderia?

Olhei para Emily com uma súbita aversão. A minha voz soou fria, desagradável.

— Pode dar-me o caderno de esboços e os lápis?

Ela olhou em volta.

— Onde estão?

Hesitei um pouco. Mas nada a impedia de abrir as minhas gavetas quando quisesse.
E nas minhas gavetas só havia coisas de Karen. Contive uma risada.

— Na gaveta de cima da cómoda.

Ela abriu a gaveta. Estendeu-mos com um gesto cansado.
Deixei-a sair, antes de abrir o bloco. Era um dos que Alan usava para tomar apontamentos. Escolhi um lápis, Graphite Aquarelle, 8B. Queria desenhar a cascata. Pensava tê-lo feito no dia em que chegara, mas os meus desenhos tinham-se perdido. A minha mochila devia ter caído na água do lago e sido arrastada para longe. Ou, e a ideia assustava-me, talvez Alan a tivesse encontrado e escondido nalgum canto da casa.

Tracei algumas linhas indecisas num canto da folha, o movimento da água, uma árvore por trás. Escureci um pouco o tronco da árvore, molhei o dedo com saliva e passei-o no papel.
Olhei para a minha mão esguia, bem hidratada, as unhas mais compridas do que o habitual, o verniz rosa-pálido, como se nunca a tivesse visto antes.

Arranquei a folha do bloco e fiz uma bola com ela.

Recomecei a medo, mas nada aconteceu.

Sentia-me fria, e estonteada, quando deixei cair o braço ao longo do corpo e o lápis deslizou para o chão.

Não sabia desenhar.

WHO IS KAREN?Onde histórias criam vida. Descubra agora