5 - I remember things

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Não fazia sentido, mas receava que eles me apanhassem nalguma contradição, nalguma frase, até nalgum gesto, que demonstrasse que eu não era Karen.

Talvez porque isso poderia dar-lhes uma indicação de quem eu realmente era, e sentia necessidade de protegê-la, a rapariga de Londres com os seus jeans velhos e cabelo descuidado, e mãos um pouco ásperas, com restos de tinta nas unhas. A rapariga com o seu colar de prata comprado em Portobello, que passava tardes a ouvir música ou ler poemas e depois se aproximava da tela e se entregava a um ritual mágico, como se deitasse cinzas sobre a cabeça ou esfregasse cinábrio no rosto.

Os arranhões no meu rosto quase tinham desaparecido, mas não o risco na testa. Gostava da ideia de que ficasse uma leve cicatriz.

Voltar para Londres com uma cicatriz e recomeçar, as manhãs junto ao rio, as tardes nas galerias, a música e os poemas, e os meus quadros. Os meus quadros nas paredes. Havia alguns de que não me queria separar nunca, como aquele que estava em frente da cama, cachos de lilases que tinham passado através de mim, reconhecíveis só para mim.

Não havia quadros originais na casa, mas algumas boas reproduções. Emily dissera que tinham sido vendidos, e também alguns móveis com valor.

Antes de Alan casar com Karen.

Uma noite, ela tinha vindo trazer-me o cacau e os biscoitos, e sentara-se na cadeira junto à janela, o olhar perdido na escuridão lá fora. Vestia uma camisola e uma saia cinzentas e o cabelo caía-lhe para o rosto. Parecia cansada.

— A casa é grande para tão poucas pessoas – disse.

Ela sorriu.

— Alan e eu gostamos de casas grandes.

E Karen?

Sentir-se-ia perdida nos longos corredores, nas alamedas do jardim?

Naquele momento, tomei uma decisão.

Precisava de um aliado.

Ou melhor, uma aliada.

A rapariga, Carol, não me parecia muito inteligente e não devia conhecer a fundo o que se passava ali. Emily… mas sem tornar as coisas demasiado evidentes.

— Há coisas… de que simplesmente não me lembro.

Ela levantou os olhos.

— O médico disse que era natural. Mas que ia passar com os dias.

O médico de que não me lembrava.

Era Emily que mudava a ligadura do tornozelo, com as suas mãos um pouco bruscas mas hábeis.

— Sim – disse rapidamente.

— Mas compreendo que deve ser perturbador.

Agarrei a oportunidade.

— A Emily pode ajudar-me.

— Contando-lhe coisas?

— É como se faltassem peças no puzzle.

— Compreendo.

— Sei tão poucas coisas de Alan.

Ela sorriu.

— Não é fácil conhecê-lo.

— O que faz ele o dia inteiro?

Além de passear com o Sam?

— Além de passear com o Sam.

— Passa algum tempo no estúdio.

— É lá que dorme?

— No pequeno quarto ao lado do estúdio.

— Desde quando?

— Poucos dias antes… do acidente.

— Porquê?

Ela abanou a cabeça.

— Não sei. Suponho que discutiram.

— Discutíamos muito?

— Algumas vezes.

— Ele… tem outras mulheres?

O rosto dela contraiu-se, como se achasse a pergunta vulgar, de mau gosto.

— Não creio.

— E eu…

— Não se lembra?

— Não. Nem me lembro de como o conheci.

Ela apoiou a cabeça nas costas da cadeira.

— A Karen estava no segundo ano da universidade. Ele deu um workshop sobre o seu livro.

Então Alan era um escritor. Não só o descendente de uma família arruinada que vendia os objectos de valor que tinham restado.

— Ele sempre disse que tinha reparado logo em si. Porque era tão bonita, porque conhecia tão bem o seu livro de contos. Quando o workshop acabou, convidou-a para sair.

Juntei as duas imagens, o homem de camisa branca, a rapariga de casaco escuro. O homem e a rapariga caminhavam junto ao rio. Beijavam-se pela primeira vez. E talvez ela pensasse “a nossa mesa de trabalho”, os nossos livros.

Emily continuou:

— Casaram dois meses depois.

— Quando foi isso?

— A Karen tinha vinte e dois anos. Vai fazer vinte e cinco para o mês que vem.

E eu deixei de estudar?!

— Sim. Veio viver para aqui.

— Estava muito apaixonada.

— Nunca vi uma mulher tão apaixonada.

— Compreendo isso – disse baixinho.
Ela baixou um pouco a cabeça.

— Porque continua a estar, Karen. —Tentei sorrir.

— Isso não passa com uma queda.

— Não.

Ela levantou-se.

— Vamos dormir. Aqui deitamo-nos cedo.

Como sempre, fechou a porta atrás de si sem olhar para trás.
Depois da hesitação inicial, falara com tanta naturalidade, que eu não podia deixar de sentir suspeita. E se aquilo fosse deliberado, fizesse parte do plano, dar-me uma falsa memória… Puxei a roupa para cima.

O quarto estava sempre gelado.

Pensei que devia parecer uma princesa de contos de fadas, com a minha camisa branca bordada e o cabelo brilhante caindo sobre os ombros.

Alguém bem cuidado, era isso, alguém de quem tomavam conta.

Tentei pensar no meu estúdio, a cama estreita, a pintura na parede, o William na mesa-de-cabeceira.
Mas o meu corpo abandonou-se aos lençóis macios, ao estranho e familiar papel de parede, como o papel de parede no meu quarto de criança, ao leve cheiro a rosas que vinha da minha pele e da janela fechada pouco antes; fixei o homem de olhos azuis na foto, com a camisa branca, o casaco sobre o ombro, aquele olhar que ignorava a câmara, que ignorava tudo à sua volta, que não me via a mim.

WHO IS KAREN?Onde histórias criam vida. Descubra agora