12 - O lugar errado

4 3 0
                                    

Não deixei o quarto o resto do dia. Embora sentisse que nada ali me podia reconfortar.

O medo não vinha da chuva, da casa onde só entrara umas semanas antes, nem sequer da vereda íngreme para a cascata ou da rua abandonada junto ao mar onde me via a fugir de alguém num pesadelo. Embora essas coisas estivessem entranhadas em mim, este medo era ainda mais fundo. Sentia medo da minha mão bem cuidada, do verniz que começava a descascar e que Emily certamente irá repor no dia seguinte. Medo do meu cabelo que o champô de boa marca tinha transformado, dando-lhe um brilho novo, medo do roupão azul que vestia e tinha um monograma na algibeira do peito.

Pensei na entrada da minha casa em Londres, os degraus que levavam à porta, os arbustos que cresciam ao lado, não me lembrava de os ter visto em flor. O vestíbulo e as escadas eram vagos, como se estivessem sempre às escuras. A porta do estúdio, um vaso com uma planta. A janela entreaberta que dava para os telhados. A janela onde tinha os vasos com gerânios, que trazia para a cozinha quando o tempo estava mau. O meu gato a dormir na cadeira de vime de que mais gostava. O fim da tarde a ouvir música, a ler poemas, gosto de ficção em geral, de romances de cordel, gosto de poucos poetas, mas desses gosto apaixonadamente. E depois o momento em que parava em frente do cavalete, ou me inclinava sobre a mesa, e uma coisa que sentira profundamente, que pensara profundamente, começava a tornarse visível. As minhas mãos e os meus braços sujos. O cheiro a tinta de óleo que não desaparecia ainda que deixasse as janelas abertas.

Havia angústia naquele processo mas também, quando conseguia afastar-me do caminho, algo que se assemelhava a um estado de graça, como a bênção numa igreja.
Eu era religiosa no que dizia respeito às minhas pinturas. Compreendia porque Fra Angelico precisava de rezar antes de começar o seu trabalho, eu também rezava, à minha maneira, às vezes até da maneira convencional.

Deitei-me cedo, com um livro, e fiquei à espera da habitual pancada na porta. Pelas onze horas, quando eles se fossem deitar.

Já não pensava nos quadros, mas nos beijos dele. No regresso ao automóvel, debaixo da chuva.

O Sam a abanar a cauda e a sacudir-se e a molhar tudo à sua volta. Ele comentara, como se não tivesse importância:

— Sabes que beijas muito melhor?

— Eu não sabia beijar? — Não.

— E não me ensinaste?

— Sempre gostei dos teus beijos desajeitados.

Quando bateram à porta, endireitei-me na cama. Foi ele que entrou e isso não me surpreendeu.
Estendeu-me a chávena de cacau e começou a mordiscar um biscoito.

— Não são para mim?

— Emily não me deixa comer mais de dois ou três. E manda-me embora se me apanha na despensa.

— Nunca fez isso comigo.

— Não.

— Porquê?

— Sempre te tratámos como uma princesa.

O pequeno-almoço na cama, o vaso de rosas de outono.

Só havia rosas no meu quarto e na biblioteca.

As da biblioteca eram mais pesadas, com um perfume mais pesado, não tinham a leveza das pequeninas, talvez de uma trepadeira, que estavam na minha cómoda.

Ele sentou-se na cama e deu-me um biscoito, como se fizesse um favor.

— Deviam adorar-te… — Quem?

— Não sei. A cozinheira, as empregadas da casa, quando eras menino.

— Sim, nessa altura ainda havia empregados.

— Emily não o é.

— Não. De forma alguma.

Mas ela também o adorava.

Um sentimento um pouco maternal, talvez, embora não devessem ter nem dez anos de diferença.

— O que fazia ela antes de vir para aqui?

— Era casada com o dono de uma estalagem à beira-mar. Casou muito jovem.

— A sério?

— Tinhas esquecido?

— Creio… que sim.

— Quando o marido morreu tinham dívidas e ela vendeu a estalagem e ficou com pouco dinheiro. Foi então que a minha mãe a convidou para trabalhar aqui.

— Conheciam-se?

— A minha mãe tinha passado alguns verões na estalagem.

Tudo tão familiar, tão romance do princípio do século XX. Deviam tomar chá as duas todas as tardes, e ler novelas românticas.

— Ela devia ser bem bonita.

— Ainda é.

— Sim.

Estendi-lhe a chávena de cacau que ele pôs no prato onde já não havia biscoitos. Pousou-os na cómoda e quando voltou sentou-se mais perto de mim.

— Não é justo.

— O quê?

— Não dormir no meu quarto.

Esbocei um sorriso.

— O outro não é agradável?

— Estás a brincar? Aquela ala da casa é gelada.

— Ainda mais do que esta?

— Não imaginas.

— Queres voltar para o calor da tua cama.

— Quero.

— E o que fazes comigo?

— O que tu quiseres.

Roçou com os dedos a cicatriz na minha testa.

— Deves ser a única mulher a quem uma cicatriz torna ainda mais bonita.

— Achas?

Inclinou-se para beijar-me.

— Não teremos tanto frio se estivermos juntos.

— Não. Suponho que não.

— Sinto a falta do teu corpo. Terrivelmente.

— Emily disse… que não sabia se tu me amavas.

— Ela disse isso?

— Disse que era impossível saber o que sentias de facto.

— É estranho. Eu sempre achei que ela lia em mim como num livro aberto.

Levantou-se.

— Até logo.

Dei por mim a dizer a mais simples das orações, por favor, faz com que ele volte, por favor, faz com que ele volte. Ele voltou daí a quase uma hora.

Quando acordei na manhã seguinte, já não estava na cama. Mas em breve ouvi os sons habituais, ele a assobiar, o Sam a latir, Emily a dizer qualquer coisa de uma janela.

Levantei-me e fui à janela. Naquele dia ele pareceu sentir a minha presença. Voltou-se para trás e acenou-me.
Retribuí com um pequeno gesto. Estava um dia bonito, azul e sol.

E eu estava apaixonada pela primeira vez.

Nunca vira alguém tão apaixonado na minha vida.

WHO IS KAREN?Onde histórias criam vida. Descubra agora