4 - A janela

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Agora passava uma parte do dia numa cadeira confortável junto à janela, envolta num roupão azul, que dissipava um pouco o frio do quarto. Gostava de ter a janela entreaberta, cheirava a rosas e a terra molhada e a nevoeiro. Adormecia com um livro aberto nos joelhos e a perna estendida, e já não acordava assustada, o quarto era familiar. O jardim lá fora transformava-se em poucos minutos, o sol iluminava tudo e lembrava que ainda estávamos em setembro, o nevoeiro invadia tudo, e era uma sensação estranha, como se a janela desse para um poço.

Talvez Karen tivesse brincado ali quando era pequena, devia haver outras crianças nas férias, como seria brincar às escondidas num jardim cheio de nevoeiro, mais perturbador ainda, como seria brincar à cabra-cega, como se os jogos se multiplicassem por dois, como se ganhassem uma segunda dimensão, jogos de fantasmas de olhos fechados, como soariam as cantigas infantis no meio do nevoeiro, sempre achei as cantigas infantis sinistras, resquícios de contos de fadas cruéis, como soariam ali, onde as crianças mal se viam umas às outras.

Quando fiz a pergunta a Emily compreendi logo que tinha sido desastrada, ela olhou-me com estranheza.

- Com quem brincava?

- Devia ter amigos. Não me lembro deles.

- Mas a Karen não cresceu aqui. Só veio para cá depois de casar.

A minha desculpa soou menos convincente do que nunca.

- Ainda estou muito confusa.

Mas ela continuou, com naturalidade:

- Foi Alan que cresceu aqui. Esta casa sempre pertenceu à família dele. Era uma das famílias mais importantes da região. A Karen teria gostado da mãe dele. Era muito bonita e afectuosa.

- E o pai?

- Viajava muito. Acho que a mulher e o filho não lhe perdoavam isso.

- Alan deve ter ido para um colégio.

- Mas voltava nas férias.

- E tinha amigos?

- Sim, tinha alguns aqui nos arredores, que também voltavam nas férias.

Então era ele que fechava os olhos e depois procurava fantasmas no meio do nevoeiro.

- Sim, consigo imaginá-lo aqui. Com um cão.

- Ele sempre teve um cão.

Emily levantou-se.

- É melhor descansar.

- Sim.

Saiu sem se voltar para trás. Peguei no livro que estava na mesa-decabeceira. Um pequeno mundo, como nos romances de Jane Austen, uma impressão de vida que me aquecia por dentro.
Era isso que procurava quando ia à galeria. Descobri-a por acaso, quando vivia no sótão há alguns meses. Um dia regressava a casa absorta nos meus pensamentos, uma neblina espessa escondia o outro lado das ruas. E de repente vi a porta aberta da galeria, e tive consciência do silêncio, a neblina abafava mesmo os sons mais próximos, os passos e os automóveis.

Estava numa rua onde nunca tinha passado antes.

Algo me conduzira até ali.

Eu acredito em sinais.

Como os candeeiros de uma rua, que nos indicam o caminho na escuridão ou no nevoeiro.

A galeria ficava num prédio antigo e tinha na parede um anjo em baixorelevo, um anjo alto, como todos os anjos, os braços abertos, os pés escondidos pelo manto; uma tabuleta de madeira dizia Antiques old and new. A montra um pouco escura, uma caverna com quadros e objectos indistintos.

"Old and new."

Entrei e era como uma igreja onde alguém acendeu umas velas, quase escuridão e depois uma luz acesa que desvelava pequenas maravilhas, quadros e esculturas de que ninguém ouviria falar.
Ele estava sentado numa mesa, num recanto quase escondido por uma estante, e modelava uma massa branca com as mãos compridas e ágeis. Tinha um daqueles rostos que a velhice revela, ossudos e graves, Samuel Beckett tinha um desses rostos, quando a alma já está tão perto que é quase visível, a alma está tão perto como a de um animal. Nesse dia não trocámos mais do que um leve cumprimento, mas comecei a passar naquela rua todas as tardes, quando voltava para o estúdio, com um saco de compras nos braços ou um ramo de flores do campo, às vezes ele estava na porta a fumar um cigarro (os meus anjos fumam e bebem café) e sorríamos um para o outro.

Como num conto de Henry James, levámos meses a começar a falar, a dizer os nossos nomes. Um dia meti numa pasta uma pintura que acabava de secar e levei-a comigo, deixei-a sobre a mesa como uma oferenda. Ele pegou na tela com cuidado.

- Há quadros que capturam um momento e outros que precisam de tempo.

- Eu sei.

- Não tenhas pressa. Deixa-os ficar dentro de ti. - Entre os esboços e... - E a tela ou o papel.

Gostava de sentar-me a vê-lo modelar, eram estátuas pequenas, e não se pareciam com nada que eu conhecesse, eram pessoas ou animais, mas pessoas ou animais que tinham vivido há muito tempo. De vez em quando dividíamos o almoço, um naco de pão e queijo, um copo de vinho. Eu falava-lhe do jardim nas traseiras da minha primeira casa, do riacho que passava ao fundo e das flores que cresciam à sua beira, e das ninhadas de gatos, e de Deus no riacho e nas flores e nos gatos recém-nascidos. Ele falava-me de quadros e de viagens, estampas japonesas e lugares onde o mar gelava no inverno. Os quadros de Van Gogh em Amesterdão e os de El Greco em Madrid (tu lembras-me uma madona de El Greco, as tuas linhas, a forma do teu rosto). Fiquei a conhecer galerias em que entramos para ver um só quadro, mal iluminado, e ruas solitárias onde a nossa alma se perde e acordam medos antigos, que talvez nem sejam nossos mas que herdámos com o sangue e as linhas do corpo; e as gotas de orvalho de manhã cedo em todas as folhas e todos os ramos de um bosque onde ninguém passa, e o som da água é o som do universo, o som que também está no fundo de nós, misturado com o vazio e a escuridão.

Quando ia passar um dia ou dois fora, num dos meus passeios pelo Norte da Inglaterra, era à galeria que me dirigia primeiro, ainda com os jeans sujos de terra e as botas de lama; tirava da mochila o caderno de esboços e ele folheava-o, e eu inclinava-me sobre o seu ombro.

- Estão cada vez mais abstractos - disse-me uma vez.

- Sim.

- A natureza é abstracta.

Deteve-se a meio do bloco. Na página esquerda havia um desenho a lápis, pequenas árvores de fruto no meio da água. Na outra, manchas verdes e brancas, algum rosa; e a mesma fragilidade das coisas que existem simplesmente, um pouco trémulas e cheias de esperança.

- Este?

- Sim.

- Dormi numa estalagem. Choveu muito de noite. Quando abri a janela de manhã, o pomar estava inundado.

- Era muito cedo.

- Sim.

Ele sorriu.

- Bom trabalho.

Tomei um café pelo caminho, e quando entrei no estúdio limitei-me a tirar as botas. Estendi-me na cama, o gato enroscou-se nos meus joelhos e não tardámos a adormecer.
Uma vez encontrei uma foto do meu amigo quando era pouco mais velho do que eu, um rosto belo mas ainda não aperfeiçoado pelo tempo, pensei que havia algo de errado, um de nós tinha nascido na altura errada.
Ele apresentou-me os artistas que expunham na galeria, eram todos desconhecidos como eu. Encontrávamo-nos lá para tomar um copo, para celebrar um quadro vendido.

Mas era bom pensar que ele guardava para mim os momentos em que estava sozinho. 

WHO IS KAREN?Onde histórias criam vida. Descubra agora