17 - Os fiordes

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Deitámo-nos muito tarde naquela noite; depois de os últimos convidados irem embora ainda ficámos na biblioteca, como se precisássemos de tê-la só para nós.
Eu encolhi-me no sofá com um copo na mão, as madeixas de cabelo a caírem-me para o rosto.

Uma impressão de torvelinho, uma rapariga de vestido vermelho a dançar com estranhos, a dançar com um homem que era pouco mais que um estranho. A rapariga no jardim e o homem e a mulher no nevoeiro.

Não, eles não se beijaram, não era aquela espécie de amor.

Mas tinham continuado, e as imagens eram cada vez mais nítidas, o homem a caminhar quilómetros sem ver ninguém, parando junto a uma nascente para beber água com as mãos em concha, sentado numa pedra a comer qualquer coisa, o olhar perdido nos fiordes. A mulher à espera numa casa solitária, com uma felicidade tranquila, talvez a rapariga ruiva continuasse a vir dois ou três dias por semana, mas na realidade ela não precisava de ninguém. Ela era demasiado inteira, dissera Alan um dia. Ela tinha o jardim, a biblioteca aquecida, e uma vez por semana ia à biblioteca da aldeia trocar os romances ligeiros de que gostava, e à noite via as suas séries policiais. De novo em paz, porque não havia uma intrusa na casa. Como nos tempos em que era jovem e bonita e esperava que ele voltasse da universidade, uma festa… a sua ideia de uma festa. E por vezes teria à espera no correio um postal de uma terra de que nunca ouvira falar, e pô-lo-ia na cómoda, para o ver à noite. O seu quarto estava sempre fechado à chave, eu apercebera-me disso.

Inteira… como eu nunca seria, ali ou em Londres.

Karen descobrira-o, tivera mais tempo do que eu, era o que ela sabia e eu não, que seria sempre uma intrusa naquela casa, e eles se veriam livres dela logo que a sua presença ali não fosse necessária.

Quando passaram perto de mim, debaixo de um candeeiro, tive consciência de que ele parecia mais velho e ela muito mais jovem, eram ambos altos e magros e não sentiam o frio, enquanto eu me rodeava com os braços num gesto de protecção.

Ele adormeceu quase de seguida, mas eu não tinha sono. Lavara o rosto com ferocidade e metera os dedos no cabelo para o despentear completamente. Sentira vontade de amachucar o vestido vermelho, mas acabara por metê-lo na caixa quase com veneração.

O cheiro das flores no andar de baixo entrava pelas frinchas da porta e deixava-me um pouco enjoada. Finalmente adormeci.

Acordei tarde, ninguém me tinha chamado para o pequeno-almoço. Tomei um duche e vesti uns jeans e uma camisola branca. Deixei o cabelo solto. Inclinei-me no patamar e ouvi Emily e Carol na sala de baile, deviam estar a limpar os despojos da noite anterior.

Perguntei a mim mesma se Emily usaria de novo o disfarce de governanta de meia-idade. Não ouvia Alan nem Sam, deviam ter ido dar um passeio.

Dirigi-me para o estúdio dele. Estava um pouco empoeirado, um pouco em desordem. Sentei-me à secretária e tentei de novo abrir a gaveta. Não estava fechada à chave. Alguns blocos, algumas folhas soltas. Peguei nas duas páginas que pareciam arrancadas de um bloco, cobertas com a sua letra irregular, ainda mais irregular que de costume, como se tivessem sido escritas à luz de uma vela.

Tenho saudades de seguir pela noite sueca fora com o corpo estourado embalado pelo movimento do último autocarro do dia, vazio, em que só eu e o motorista seguíamos, e olhar pela janela e ver a luz da lua cheia reflectida no cinzento do mar – e como tenho pena de quem nunca verá a luz da Lua sobre os rochedos unidos por pontes nas águas suecas –; tenho saudades de tentar manter-me acordado no autocarro, ainda de manhã mas com o sono de seis horas na cama depois de treze no trabalho e quatro de viagem, e ver um casal de cisnes com duas crias entre si, nadando devagar na água, perto da ilha; tenho saudades de ver os limos agarrados ao cabo de aço do ferry que me levava à ilha dos ricos, e de ouvir o som da água a embater nos iates brancos e o vento sempre forte a fazer estalar as bandeiras nas hastes; tenho saudades de trabalhar aos fins-de-semana e feriados e ver pela janela os outros a andar ao sol, e de chover sempre que tinha folga, tenho saudades de chegar de madrugada à estação central e de só a revisora e eu sairmos do comboio, e de percorrer as ruas onde só os bêbados vomitavam e sentir o vento empurrar-me – e como tenho pena de quem nunca verá Gotemburgo à noite, quando já só há bêbados na rua –; tenho saudades de andar no eléctrico azul cheio de sono e de usar uma caneta vermelha para rever uma tradução que tinha de entregar enquanto massacrava o corpo na cozinha abafada na ilha; tenho saudades de ser o único estrangeiro na mesa quando fechávamos e todo o pessoal se reunia e me perguntavam porque é que usava alho na comida; tenho saudades de um cão a arrastar pela trela o dono no deserto das manhãs de Gotemburgo e de o dono me agradecer por lhe fazer festas; tenho saudades de caminhar dezoito quilómetros nos fiordes noruegueses para ir às compras, sem ver ninguém durante horas, e o primeiro contacto visual ser com um rebanho de ovelhas – e como tenho pena de quem nunca caminhará pelos fiordes com as compras às costas –; tenho saudades de enfiar os pés no lodo e de sentir a neve estalar debaixo das botas; tenho saudades de não poder parar para não arrefecer ao vento, e de subir quinhentos metros quase a pique; tenho saudades de passar por rochedos enormes e ver montanhas com neve e quedas-d’água por trás do verde que me tapa do sol mortiço; tenho saudades da luz azul do céu e de me abaixar na floresta para beber água que corre continuamente pelo monte abaixo, mesmo junto a dejectos de raposa.

Deixei o bloco e as páginas soltas em cima da secretária, não fechei a gaveta.
Tinha vinte e cinco anos e era uma herdeira. Não fazia a menor ideia de quanto herdara, mas devia ser algo de considerável. Nos próximos dias iria receber a visita de um notário, de um advogado… E talvez uns dias depois ele sugerisse um passeio até à cascata.

A minha obsessão pela cascata, por atravessar a cascata, seria muito útil.

Uma coisa se tornara clara na conversa entre ele e Emily na noite anterior, nas páginas que acabava de ler.

Ele não me incluía nos seus planos.

Mesmo como Karen, eu era uma intrusa.

Saí do estúdio, debrucei-me na balaustrada e chamei Carol. Ela veio ao meu encontro com um ar contrariado.

— A que horas passa o próximo autocarro?

— Para a aldeia? – perguntou.

Apertei os punhos com impaciência.

— Não. Em sentido contrário.

Ela olhou para baixo, como se esperasse ver Emily ou Alan.

— Não sei bem.

Estava a tentar ganhar tempo. Mas não surgiu ninguém em seu auxílio.

— Então?

— Tenho um horário…

— A que horas, Carol?

— Sai da aldeia daqui a dez minutos.

Sem lhe agradecer, entrei no meu quarto e peguei na bolsa. Verifiquei que tinha algum dinheiro. O colar de madrepérola estava em cima da cómoda. Pela primeira vez, esquecera-me de o colocar depois do banho.
Não havia ninguém por perto quando desci a escada. Abri o armário da entrada e vasculhei entre os casacos e gabardinas até tocar no tecido familiar. Vesti o casaco castanho e fechei-o até ao pescoço. Meti a mão na algibeira e senti a pequena pedra cor de laranja.

Tinha de apressar-me.

Daí a poucos minutos o autocarro passaria na estrada.

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