Capítulo 07 : A voz! A voz na minha cabeça simplesmente não para!

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- Tá... Filho de boto, boto é... Certo? – perguntei enquanto almoçávamos.

Já havia se passado cerca de três semanas desde que retornamos para Jundiaí. Convenientemente, Araí continuava em casa e eu ainda estava de licença do trabalho. Os dias pareciam ser mais longos e, portanto, nos víamos obrigados a interagir mais um com o outro para poder passar o tempo e ter um convívio mais agradável, já que a minha mãe, apesar de aposentada, continuava a prestar algumas consultorias como coaching¹ e acabava nos deixando sozinhos por muitas horas. Além disso, eu não costumava receber muitas visitas, nem mesmo de meus amigos...

Nos primeiros dias foi uma loucura para coordenar tanta gente vindo conferir como eu estava e tentar saber o que realmente acontecera comigo. Alguns surtavam ao ver o Araí, já o classificando como meu namorado ou talvez meu herói, sem nem antes ouvir a história toda e descobrir que eu fora encontrada pelas autoridades na verdade.

Sinceramente, era divertido receber alguns dos amigos, mas a cada pessoa que eu via passar pela porta, eu sentia que alguma coisa iria entrar com elas. Ás vezes eu simplesmente não conseguia ver o rosto das minhas visitas, pois só enxergava garras, presas, escamas, gosma, sangue... monstros!

Tudo isso acabava desencadeando uma crise nervosa e quem tinha que assumir as rédeas da situação acaba sendo o próprio Araí, pois nem sempre a minha mãe estava em casa e mesmo quando estava, ela não conseguia me entender como ele entendia. Era desesperador, era humilhante...

E com isso, todos começaram a me achar cada vez mais estranha. Uns ficaram preocupados e seguiram a recomendação do Araí de me dar um tempo, a fim de me recuperar melhor. Outros simplesmente ficaram incomodados com as minhas crises e acataram com alívio o que o garoto desconhecido lhes sugeria, não voltando mais... Em alguns momentos me sentia isolada do mundo e com uma saudades tremenda de sair com amigos, mas logo eu escutava o som de alguma coisa arranhando minha janela ou sussurros vindos do ralo do banheiro e entra em pânico apenas de lembrar que em breve teria que sair para ir trabalhar, para ter uma vida.

- Sim. – ele riu. – É um tanto quanto óbvio, não é?

- E filha de boto? – continuei, ignorando o tom jocoso dele. – Também se torna um boto? Uma bota? – parei para pensar, confusa. – Espera... ACHO que boto não tem feminino, né? – mordi os lábios, pensativa. – Acho que é um substantivo epiceno²... Não? – voltei a fita-lo.

- Você está certa. – continuou rindo de mim. – Não existe bota, só boto!

- Pare de rir! – joguei alguns grãos de arroz na direção dele. – É sério! É uma dúvida legitima.

- E eu respondi. – balançou a franja, retirando o grão que ficara grudado ali. – É boto mesmo.

- Tá, mas e a minha outra pergunta? – terminei de comer e empurrei o prato para o lado.

- Também respondi. – deu uma última garfada, antes de também se dar por satisfeito e fazer o mesmo que eu. – Não existem "botas".

- Ah tá... – acenei com a cabeça, entendendo o que ele queria dizer. – Então, não existe a palavra "bota" e nem mulheres que se transformam em boto. – puxei o elástico do pulso e aproveitei para prender o cabelo. – E o que elas são?

- São sereias como você. – piscou para mim e tentei me controlar para não ficar vermelha.

- Claro que eu não sou sereia. – mordi os lábios de novo, mas dessa vez era de nervosismo. – Sou bem humana até. – dei uma risada sem graça. – A única coisa de sereia que eu tenho é o no...

- Não digo só pelo nome. – interrompeu-me. – Digo também pela sua beleza e pelo seu feitiço. – sorriu galante e meu coração acelerou.

- Feitiço? – perguntei, tentando disfarçar a minha inquietação. – Agora eu virei feiticeira também?

O Azul mais ProfundoOnde histórias criam vida. Descubra agora