CAP.3

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O mês acabou, graças aos céus não vi o Thomas de novo. Minha vida continuou seguindo normalmente, eu continuei lendo como sempre e as vezes falando no telefone com as poucas amigas ou amigos que tinha. Hoje iria ter uma festa, da Hannah Mitchell, uma garota bastante popular por aqui. Ela só tem essa fama por causa de boatos que ela mesma inventou mas todo mundo sabe que é mentira, boatos que envolvem beijos ardentes, toques proibidos e duas pessoas sobre um lençol. Se isso tivesse acontecido ela provavelmente já estaria morta, o governo não deixa pessoas teimosas passarem assim.
             Se quem desobedecer não morrer pelo contágio do vírus provavelmente vai morrer em um “acidente” habitual, as regras são impostas de forma rígida. Uma vez, minha mãe desobedeceu as regras, antes de me ter, mas só minha vó sabe. O processo de gravidez e como o de anos antes, só que sem a parte do sexo, são apenas inseminações artificiais o qual sabemos como funciona, de novo as coisas continuam funcionando e o contato pele com pele é proibido. Mas com minha mãe não foi assim, ela teve relações com meu pai duas vezes, e na segunda foi a que deu origem a mim. Minha vó subornou alguns médicos e enfermeiras pra boicotar alguns registros e dizer que foi uma inseminação de jovens apaixonados, e acabou que deu certo. Fiquei sabendo em um dos dramas da minha mãe, eu acho tudo muito triste pra ser sincera.
            Já passado meus devaneios decidi me arrumar, uma roupa comum e sem muito alarde. Um vestido rodado com mangas transparentes, minha pele não podia ficar exposta, um coturno sem salto, uma jaqueta e um rabo de cavalo bem preso. Toda minha roupa na cor branca com exceção da liguinha de plástico no meu cabelo. Me olhei no espelho do banheiro, sorri algumas vezes, o único momento que eu podia ver meu sorriso, o único lugar que não precisava de máscaras nem luva. Os banheiros privados eram sempre os mais esterilizados das casas, por tomar-mos  banho e fazermos nossas necessidades lá.

-Tô indo na festa da Hannah, volto até as 23:00.- Pego meu mini frasco de álcool em gel e coloco na minha bolsa.
-Achei que você não gostava de festas.- Meu pai diz fazendo cafuné no cabelo de minha mãe, que cochilava em seu colo.
-E não gosto, mas tenho o pressentimento de algo bom.-Sorrio
-Lembre-se, sem beijos.- Ele diz e ficou calado por alguns segundos até que começamos a rir juntos.
-Ai ai...- Suspiro e uma lágrima sorridente cai- Até mais tarde- Meu pai se despede com a cabeça e aparentemente um sorriso, e depois eu finalmente saio pela porta.

           A noite estava esplêndida, assim como todas as outras. O nível de criminalidade era quase inexistente, pelo menos em minha cidade, então os postes eram poucos e a luz era fraca. Só serviam pra evitar que caíssemos e identificarmos o básico de nossas ruas, e deixando o resto pras estrelas. Aquelas estrelas brilhantes, junto a lua completando a imensidão negra daquele céu, o céu que me inspirava. Eu amava tanto vê-lo, as vezes queria toca-lo, mas se nem sem máscara poderia andar imagine ir até o espaço, feito acontecido a vários anos atrás.
           Chego na casa de Hannah, já tem muita gente dançando e flertando, gente se esfregando um no outro e gente “quase” sem roupa. Ainda vestido, ainda com a pele coberta, mas o tecido da roupa de fato cobre pouco. Observo esse bando de jovens fingindo estar bêbados, já que jamais poderão experimentar o gosto da bebida. Algumas casas tinham garrafas, bebidas caras e prestigiadas, mas todas ainda lacradas, talvez abertas mas ninguém havia tomado até onde saibamos.

-Oi amiga! Já tomou?- Ash vem cambaleando com uma garrafa de bebida, pela metade mas ainda sim fechada.
-Ashley...- Reviro os olhos negando com a cabeça- Para por favor.
-Vive um pouco Cecília Campbell...- Ela “toma" outro gole e cutuca minha testa com o dedo indicador, sinto o plástico gelado de sua luva contra a minha pele e a sensação me incomoda.
     
       Empurro-a de leve pra outro lado e ela continua com o teatro ridículo, era uma boa amiga mas a vergonha alheia era tremenda. Continuei observando em volta até chegar na parte de trás da casa, na área externa onde ficava outro jardim além do da frente. Sentei na grama e cruzei as pernas, eu queria tanto sentir como era a textura da mesma. Leio nos livros sobre o chão, sobre a terra molhada e grama levemente áspera e maleável, sobre as gotas de chuva que descem sobre ela chegando até a terra fazendo crescerem brotos ou flores lindas. Sinto os cheiros, mas a máscara só deixa mais cruel a minha existência, nunca fazemos nada de fato, e nunca faremos.
             Saio de meus pensamentos quando escuto um barulho vindo de um arbusto próximo que ficava na divisão das casas, levanto rápido e observo intrigada com o coração acelerado. Uma pessoa caí de lado e eu me aproximo.

-Você tá bem?- Pergunto me aproximando e tentando visualizar o rosto do ser.
-T-tô...- Uma voz masculina soa meio dolorida e levanta com as mãos nas costas, ainda de cabeça baixa oque não me deixa ver- Tá mais calma hoje docinho, senti sua falta.- A pessoa finalmente se ergue e eu vejo o rosto: Thomas Martin.
-Você de novo?- Pergunto e Bufo saindo em passos largos.
-Opa opa opa...- Ele segura meu braço me fazendo olhar pra ele- Porque me odeia tanto?
-Eu não te odeio, só tento te evitar. Você é um burguesinho, e eu uma megera que gosta de ler.- Ironizo rindo com sarcasmo.
-Não a chamaria de megera, apesar de você ser bem estressada.- Ele desvia o olhar- Já que não me odeia podemos ser amigos?
-Amigos?
-Isso, amigos. Você é eu gostamos de ler, somos de mundos diferentes mas podemos tentar uma amizade, o que acha?- Ele pergunta gesticulando com as mãos.
-Proposta interessante eu diria, mas vou pensar.- Ele aparentemente sorri e eu sorrio também com a cabeça levemente inclinada e encarando seu cabelo extremamente mal penteado.
           
          Ele estava prestes a dizer outra coisa mas ouvimos gritos bem alegres de dentro da casa, muito suspeitos. Eu e Thomas nos entreolhamos e andamos até o interior da casa chegando na sala de jantar.

-Essa noite fui desafiada, desafiada a fazer uma coisa incomum.- Hannah que estava em cima da mesa disse, seu cabelo estava diferente comparado ao que vi da última vez, agora ele batia no ombro e não na cintura, mas ela ainda lembrava uma noite estrelada com os olhos cor água- Minha amiga Claire que chegou recentemente de viagem me fez esse desafio, espero que oque aconteça aqui fique aqui.- Ela aparenta sorrir.
           
         Ela olha em volta, pra cada rosto conhecido ou não que está na casa dela. Passa o dedo no fio da máscara  e num ato rápido a tira, eu arregalo os olhos e algumas outras pessoas também. Thomas e eu nos entreolhamos novamente, eu recuo dois passos e abro a bolsa colocando a mão no celular, Thomas a segura e nega com a cabeça não podia chamar ninguém, não agora. Volto o olhar pra merda eminente que iria acontecer.

-Não meus amigos, isso não é o desafio ainda.- Agora sim eu visualizo perfeitamente seus lábios rosados se dobrando em um sorriso, ela inala bem o ar e solta uma risada alta- Vamos, tirem.

            Ela fala com convicção, os vulneráveis tiram, os seus amigos e minhas amigas também. Os populares parecem querer provar que são bons, eles estão desobedecendo por diversão e não necessidade, isso me entope de raiva. Cerro o punho e contraio o maxilar, enquanto eu me seguro pra não fazê-la tomar uma dose de juízo a base da porrada. Ela se inclina pra beirada da mesa, um cara também sem máscara lhe entrega uma garrafa de bebida só que dessa vez aberta. Ela toma e faz uma careta mas logo sorri, a multidão com exceção de alguns vibra e a festa volta a ser como antes. Talvez nem tanto, dessa vez as pessoas não se limitam a toques sorrateiros e não perdem tempo pra se beijar, Abby e Ashley já estão se agarrando com um cara qualquer, vou em busca de Lindsey a mais nova.
               As cenas que vejo me enojam, eles estão fazendo isso literalmente por passatempo, ninguém precisa de fato. Lembro do olhar cabisbaixo da minha mãe quando comento sobre amor, ela se lembra de tudo que fez por mais que evite conversar sobre isso comigo, e isso me dói tanto. Meus pais são um casal que quebraram as regras, de várias maneiras, eu moro com dois apaixonados que vivem com o fardo que é o amor, e agora eu vejo pessoalmente oque nem meus pais fazem: se beijar. E mais grotesco desse jeito, prefiro imaginar lendo um livro ou assistindo um filme antigo, parece mais apropriado pra mim.
                Thomas continua me seguindo, não reclamo, ele é novo e provavelmente nunca viu algo assim, nem eu. Pelo jeito que entrou deve ter invadido a festa, talvez nem tivesse sido convidado e de qualquer forma só me conhecia, depois de procurar em alguns lugares acho Lindsey agachada em um canto com as costas virada pra parede.

-Você tá bem?- Pergunto me aproximando e me abaixando também, ela ainda está com a máscara mas permanece chorando muito.
-N-não...- As palavras que saem de sua boca falham- Eu fiz besteira Ceci, minha irmã vai me matar.
-O que você fez?- Ela não responde, sai correndo.

           Eu me levanto junto a Thomas pra ir atrás dela mas um barulho chama minha atenção: sirenes. Lindsey chamou a polícia, ela sabe que violar as regras e um crime que pode até resultar na morte “acidental" de alguém, ela estava com medo e chamou a polícia. Agora estamos todos encrencados.

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