Dom Quixote

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Olá, olá, cerejinhas! Como está a quarentena? Todos quietinhos em casa?
Notem o título do capítulo. Dom Quixote é meu livro preferido e fiquei feliz em concluir que também combinava com a Valentina, não me arrependo de citá-lo.

Aproveitem ⏳

  Alastor não estava brincando quando disse que iria ficar. Ele me seguia por todo lugar, sempre tentando conversar ou chamar minha atenção, ele saltitava, cantava e dançava.

  Havia tomado a decisão de ignorá-lo até que ele se cansasse de me perseguir e fosse embora, mas, mesmo com todos os meus esforços, Alastor parecia cada dia mais dedicado a fazer com que gastasse meu precioso tempo com ele.

  Era legal ter companhia quando saia na rua de manhã ou ter alguém me fazendo rir antes de dormir. Alastor estava mais do que disposto a fazer isso, e eu estava me conformando com sua presença a cada dia que passava.

† Décimo Terceiro Flashback - Dom Quixote 


   A biblioteca local era, sem dúvida nenhuma, meu lugar preferido no mundo. Sempre que algo ruim acontecia, nos meus piores dias e momentos, eu pegava meu caderno de escrita e passava o dia sentada nas mesinhas coloridas, lendo os livros mais aleatórios que conseguia encontrar e escrevendo vez ou outra alguma ideia de poesia.

  Me encontrava sentada em uma das únicas mesas que ficava escondida entre as prateleiras. Não que eu tivesse motivos para me esconder, a biblioteca estava quase sempre vazia.

  O fato de ser uma completa estranha era o principal motivo de gostar tanto de passar meu tempo lá. Eu não precisava ser a Valentina esforçada e estudiosa que meus pais conheciam; nem a sempre alegre e conselheira Val que meus amigos amavam; ou Lena, a garota que posta alguns covers no YouTube e tem o sonho de ser compositora.

  Não precisava atingir as expectativas de ninguém, não tinha necessidade de explicar quem era ou justificar o que estava fazendo. Lá eu era uma estranha, uma tela em branco que eu fazia questão de pintar com minha essência, a versão de mim que ninguém conhecia.

— Isso é tããão chato — choramingou Alastor, enquanto andava em cima da prateleira de ficção científica. — O que você está lendo? — apareceu atrás de mim. — Posso ir embora? Estou entediado — sentou-se, por fim, na cadeira a minha frente.

  Evitei rir perante sua imperatividade, Alastor parecia incapaz de ficar quieto por um segundo, o que significava que ele estava sempre escalando paredes, mexendo com as pessoas ou dando cambalhotas.

— Não me ignore, Tina.

  Respirei fundo, abaixando o livro para observar a criatura que se esticava para ver o que tanto lia.

  Questionei se deveria voltar a falar, parecia claro que Alastor não iria embora, mesmo com meus protestos silenciosos e tentativas inúteis de entediá-lo e convencê-lo a desistir.

  Alastor continuava o mesmo garoto engraçado, que sempre sabia o que dizer na hora certa e que me amava, não importa em quais condições estivesse.

— Tem algum jeito de fazer você ir embora? — perguntei.

  Bateu a mão no queixo pensativo.

— Não. Nenhum.

— É uma pena.

— Não seja cruel!

  Ficamos algum tempo em silêncio, olhando a imensidão dos corredores que guardavam grande e pequenas histórias em meras folhas de papel.

  Entrar em um biblioteca é como ser testemunha de inúmeras vidas, ao mesmo tempo que um telespectador feroz, que mal acaba um capítulo e já vira a página, ansioso para ver a desgraça da vida de alguém se resolver em um passe de mágica. Enquanto isso, sua vida se faz um pouco mais deprimente a cada segundo que você passa se esquecendo dos problemas e lembrando que você nunca vai achar um gênio da lâmpada, explorar o mar aberto ou se descobrir um bruxo.

— O que está lendo? — repetiu a pergunta.

— Dom Quixote, o personagem que realizou o meu sonho.

— Aquele de montar em um cavalo e sair explorando o mundo?

— Esse mesmo.

  Voltei a ler ao capítulo, mesmo sentindo a sensação incômoda de Alastor me encarando.

— Tiiiiiiinaaa — mas ele continuou me distraindo. — Eu quero ir pra casa.

— Tipo o inferno?

— Tipo a "sua" casa. Você tem um monte de livros lá, não precisa ficar aqui.

— Seguinte, podemos ir embora, contando que me conte o que você é e o que está fazendo aqui.

  O sorriso de Alastor sumiu, ele precisou pensar um pouco antes de responder.

— Prefiro ficar aqui mais um pouco então.

  Bati o livro na mesa, indignada, o que ele tanto escondia de mim?

  As poucas pessoas que estavam na biblioteca me encararam com raiva, fazendo-me sorrir sem graça e me desculpar silenciosamente.

— É a primeira vez em meses que não te ignoro e você não pode me falar de que buraco você saiu?

— Chantagear o amiguinho não é legal meu anjo.

— Por que não pode me falar?

— Se você soubesse me mandaria embora e se eu for embora... — sua frase se perdeu.

  Gesticulei com as mãos para que continuasse, mas Alastor calou a boca e abaixou a cabeça.

— Eu preciso de você — falou tão baixo que, se não fosse o lugar, eu nunca teria escutado.

  Nas próximas cinco horas eu e Alastor ficamos em total silêncio, apenas como o barulho do ventilador e eventuais suspiros preenchendo o ambiente.

  Tive tempo para pensar.

  Ao anoitecer, enquanto caminhávamos de volta para casa, decidi acolher Alastor na minha vida, não importando o lugar que ele tenha vindo ou sua missão. Ele esteve lá quando mais precisei e se ele precisava de mim agora, eu faria o possível para ajudá-lo.

— Por que precisa de mim?

— Eu estou aqui por sua causa.

— E o que quer que eu faça?

— Fique viva.

  Estranhei a resposta.

— O que isso quer dizer?

— Perguntas demais Valentina.

— Só mais uma?

  Ele assentiu risonho.

— Então, ainda quer aquele almoço?

— Pensei que nunca iria perguntar.

  Caminhamos devagar pelas ruazinhas escuras do meu bairro, fazendo planos como Dom Quixote e assustando os pedestres que me viam falando sozinha.


  Eu não tinha certeza do que estava fazendo, se era a melhor decisão a ser tomada ou o que aconteceria comigo. Eu não me importava também, apenas queria ficar perto de Alastor.

  Não podia fingir que era algo ruim, estava empolgada por ter o meu garoto perfeito ao vivo e a cores bem na minha frente. Ele não parecia obsessivo ou me impedia de viver a vida, Alastor me completava e eu o queria por perto, com suas palavras doces, seu senso de humor ácido, suas críticas amargas e seu jeito agridoce. Meu Alastor com olhos escuros, voz aveludada e sorriso brilhante. Simplesmente Alastor, meu garoto cheio, meu amor.

Beijinhos caramelados ⌛

AmênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora