Dois

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-Acorda cabeça quente! - disse Theo chacoalhando sua irmã ferozmente de um lado para o outro. "Bem, pelo menos ele não despejou um balde de água gelada desta vez.", pensou Julieta. -Estou com fome!

Foi então que a ficha caiu: "Não passou de um sonho!"  Indagou Julieta. "Mas foi tudo tão real!"

-Não ouviu o que eu falei?! - disse Theo tirando Julieta da concentração de seus pensamentos.

-Precisava ser tão mau humorado logo cedo? - perguntou a jovem esfregando os olhos e dando um longo bocejo.

Como resposta para a pergunta, foi derrubada da cama pelo irmão.

-Se não quiser que eu minta para o Tio Marcelo dizendo que não fez o dever, levante e vá preparar o café! - ameaçou Theo.

Ela se levantou rapidamente, colocou seus grandes e redondos óculos, arrumou as camas depressa, e foi fazer o café. Sabia que despertar a ira do irmão só traria a ela mais problemas. Esquentou a água, pôs a mesa, e colocou as xícaras. No exato momento que terminou de passar o café, sua tia acordou.

-Bom dia! - exclamou Sara. Ela parecia tão incrivelmente feliz aquela manhã que seu "Bom Dia" foi quase cantado. - Querida! Quantas vezes te falei que não precisa acordar mais cedo para preparar o café. Deixa que eu faço! - disse ela analisando o cabelo bagunçado da jovem e para suas costas um pouco encurvadas: sabia o que tinha acontecido.

Sentindo pena de Julieta, deu um sorriso de lado, na tentativa de fazê-la se sentir melhor, pois era o que ela poderia fazer. Se desse uma bronca em Theo, ele iria correndo contar para o tio, que provavelmente iria defendê-lo de uma maneira não tão agradável.

-Gosto de fazer isso para ver a senhora feliz, Tia Sara. - exclamou Julieta quase como um grito abafado de socorro.

-Obrigada, meu bem. - disse Sara indo dar um abraço em Julieta. Foi um abraço carinhoso e lento, fazendo com que algumas lágrimas escapassem dos olhos de Julieta. Já fazia um bom tempo que não era abraçada daquela maneira.

-Pode ir se arrumar. Eu termino aqui. - disse ela carinhosamente dando um beijo na testa da sobrinha.

E assim a fez: Julieta foi para o quarto, colocou sua camiseta social branca, sua gravata azul, vestiu sua longa saia preta, calçou suas compridas meias brancas e seu sapatos pretos e foi para o banheiro pentear seus longos e rebeldes cachos.

Enquanto o penteava, ouviu algumas batidas na porta do banheiro.

-Sai logo que eu estou apertado! -gritou Theo do lado de fora do banheiro.

Julieta pegou a escova e o creme e saiu imediatamente para o seu quarto. Por pouco não é tirada do banheiro aos berros. Seguiu para o pequeno espelho que tinha pendurado na parede de seu quarto e continuou penteando seu cabelo. 

Seu cabelo era uma marca, um orgulho para a menina, sua identidade, o que fazia da Julieta, a Julieta! Uma enorme juba vermelha e armada, junto de sua pele branquíssima e de seus olhos escuros, eram tão escuros que pareciam jabuticabas, que ficavam mais brilhantes e realçados com seus óculos finos e redondos. Por mais que não se cuidasse muito, sempre se sentia bem consigo mesma. Deu uma última olhada em seu reflexo, ajeitou sua saia, pegou sua mochila vermelha e foi tomar café.

Chegando na cozinha, seu tio estava na ponta da mesa escondido atrás de seu jornal favorito, sua tia estava lavando as louças e seu irmão devorava seu pão como se nunca mais viesse a comer novamente.

-Bom dia! - cumprimentou Julieta, mas foi em vão, já que Marcelo não gostava de ser interrompido em meio a leitura de seu caderno de economia.

A jovem se sentou, comeu rapidamente um pequeno pão acompanhado a um café preto que ela tanto gostava, e se apressou para ir para a escola.

-Julieta! - gritou Sara da cozinha. - Espere seu irmão! Ele começou a estudar de manhã e vocês podem ir juntos!

"Que maravilha!", pensou Julieta. "Quando você não vai a tortura, a tortura vai até você!". Ela ficou na porta esperando o irmão, que enrolava de propósito para ver a irmã se mordendo de tanta raiva, e funcionou.

-Já foram, queridos? - perguntou a tia.

Julieta estava abrindo a boca para falar, quando Theo aparece diante dela.

-Estamos saindo agora! - respondeu o garoto tomando as chaves de casa da mão da irmã e saindo do apartamento, fazendo-a ir atrás.

Os dois seguiam em direção às escadas, quando Theo de repente muda a rota.

-Para onde você vai? - perguntou Julieta se segurando para não ser grossa com o irmão. 

-Uma amiga minha vai com a gente. Falei para ela que a buscaria na porta do seu apartamento. -respondeu secamente o menino batendo na porta do apartamento 185. Então esse é o motivo do bom humor: uma garota. Mais uma para a lista das iludidas por Theo Cavalcante! "Que novidade!", pensou Julieta.

-Quer saber? Não vou ficar aqui pra ver mais uma pobre iludida. Eu vou na frente!

-Obrigada! Finalmente entendeu! - respondeu o irmão seco.

Ela desceu as escadas e saiu do prédio pensando no sonho estranho que havia tido na noite anterior. "O que aquele poste destruído significa? Que lugar era aquele? O que aquelas palavras tem haver comigo? Quem eram aqueles quatro? E porque uma das sombras tentou me ajudar?"

-Isso não faz sentido... - comentou ela para si mesma.

~*~*~

O tempo voou, e a manhã passou rápido. Passou as aulas distraída com suas teorias e pensamentos sobre seu sonho, que a deixava inquieta. Foi nessa inquietude que ela passou a retornar para casa. 

Pensativa e nostálgica, a jovem se lembrou da sua história favorita, contada por seu pai, a muito tempo atrás: reis e rainhas lutando ao lado de um Leão para proteger o Reino Mágico. Esta história a arrepiava toda vez que ouvia.

Julieta estava tão perdida em sua fantasia que nem percebeu que Theo estava caminhando logo atrás dela. Ele se aproximou da irmã e caminharam juntos, em silêncio até o prédio. Não houveram brincadeiras, zombaria nem brigas. Eles apenas seguiram juntos, acompanhados do silêncio para casa. Julieta gostava de passar momentos assim com seu irmão, porque era a única maneira de desfrutar da sua companhia, de ficar perto dele.

Continuaram andando sem dizer uma palavra, ás vezes trocavam olhares inexpressivos, mas não falavam nada. Quando se aproximaram de casa, perceberam algo incomum para aquela hora do dia: um protesto bem na porta do prédio, e não era um daqueles pacíficos. Pessoas amontoadas seguravam cartazes e gritavam pedindo justiça. E a "justiça", por outro lado, repreendia-os com violência...

-Theo, vai para o apartamento agora e não saía de lá por nada, entendeu? - diz Julieta com um tom sério e preocupado. Sem pensar duas vezes, o garoto driblou a manifestação e entrou no prédio.

Em um ato de puro impulso, Julieta se enfiou no meio das pessoas e começou a procurar feridos. "Já chega de fugir!" Pensou ela.

Os policiais militares barravam o caminho das pessoas, e partiam para cima de quem tentava atravessar a barreira. Eles não estavam atirando, e a jovem não havia achado nenhum ferido, quando de repente ela ouve três disparos...

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