Antropololatria arrogante

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      Despontam, céleres novamente, as turbulências provocadas pela ameaça (ameaça, sim!) de utilizar a clonagem humana para fins de reprodução e não, como seria assimilável de forma controlada, com a finalidade terapêutica. De novo, e de forma arriscada e narcísica, estamos precariamente atentos às cautelas que tais artifícios devem comportar.
       Estamos chegando! Falta pouco, bem pouco, para nos considerarmos libertos da constrangedora e fantástica crença de termos sido feitos à imagem e semelhança da divindade; em breve, assumiremos nosso suposto exclusivo papel: não há mais lugar para divindades, pois, agora, já o somos!
        Catastrofismo? Não! Horizonte possível para a herança perigosa da petulância ocidental (muito, mas muito idosa) e que ganhou corpo com os gregos clássicos. Basta pegar o trecho da tragédia Antígona, obra inestimável de Sófocles - que ao lado de Ésquilo e Eurípedes formou magistral trio de dramaturgos na Atenas do século 5 a.C. -, no qual ele afirma que "há muitas maravilhas neste mundo, mas a maior de todas é o Homem".
         Nós ainda continuamos caudatários desse tipo de "profissão de fé"; por isso, tamanho era e é o encantamento com nossa espécie que de nada adiantara a advertência de Píndaro (talvez o mais importante poeta lírico grego) que, quando Sófocles ainda era jovem, afirmara que "o Homem é o sonho de uma sombra".
        Não adiantou mesmo. Paixão antiga...
        Exemplo forte desse profundo autoencantamento encontramos na obra de William Shakespeare; na sempre (e com razão) admirada peça Hamlet ele escreve: "Que obra de arte é o Homem: tão nobre no raciocínio, tão vário na capacidade, em forma e movimento tão preciso e admirável, na ação é como um anjo, no entendimento é como um Deus, a beleza do mundo, o exemplo dos animais".
        Nenhuma indagação sobre a nossa capacidade deletéria, a nossa presunção egoísta ou, até, a nossa infindável soberba. É como se disséssemos: "Somos insuperáveis; depois de nós, humanas e humanos, a natureza nada mais tem a oferecer de melhor. Nos encontramos no ápice da criação" (ou da evolução, como se diria, com grandes dificuldades, desde o século 19, a partir da preocupação de Darwin, para muitos irritante, em nos colocar como mais um "entre outros" seres, frutos da mutação, seleção natural e acaso).
        Apesar da dúvida parecer uma prerrogativa de seu contemporâneo Descartes, foi o francês Blaise Pascal, filósofo e escritor místico cristão, que no século 17 provocou mais desconforto contra a exaltação shakespeareana, ao suspeitar do quase sacralizado território humano: "O que é o Homem na natureza? Um nada em comparação com o infinito, um tudo em face do nada, um intermediário entre o nada e o tudo".
        Bela ideia, não? Mas, Pascal vai adiante, antes que caiamos novamente na tentação do sublime elogio a nós mesmos: "O que é, portanto, o Homem? Que novidade, que monstro, que caos, que vítima de contradições, que prodígio? Juiz de tudo, imbecil verme de terra; depositário da verdade, cloaca de incertezas e erros; glória e rebotalho do universo".
        A Quaresma, um tempo de reflexão para a religião de muitas pessoas, pode nos ensinar um pouco também, pois, ao começar em um dia chamado Quarta-feira de Cinzas, rememora a frase que, na crença judaico/cristã/islâmica, foi dita por Abraão: "Vou ousar falar ao meu Senhor, eu que não passo de pó e cinza" (Gn 18,27); na liturgia católica fica como uma frase terrível (verdadeira?) que, dita em latim, ganha mais ainda ares assustadores: Pulvis es et in pulverem reverteris (És pó e a ele voltarás).
       É preciso não desprezar outras sabedorias milenares...

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