Quiproquó

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      Entre os séculos 11 e 14, em uma Europa majoritariamente dominada pelo poder eclesiástico, apareceram várias e grandes concentrações de eruditos ligados à estrutura religiosa e que buscavam prover escolas dedicadas a estudos mais elevados para a sustentação teórica da cristandade. Essas organizações deram origem às primeiras universidades europeias e, na história do pensamento ocidental, o período é chamado de Escolástica;  nele imperou um método didático extremamente eficiente para a consolidação dos conhecimentos hegemônicos, no qual a forma do raciocínio e da exposição tinha relevância maior do que o conteúdo (inaugurando a força do formalismo que a tantos seduz, até hoje, no campo da política e da mídia).
       Por isso, na Escolástica, quando se desejava alertar um neófito estudante para o perigo das confusões formais na aprendizagem, era utilizado a locução "quid pro quod", isto é, não confunda quid com quod (um nominativo com um ablativo), ou seja, não há tomar uma palavra pela outra, misturar isto com aquilo. Essa locução tornou-se o substantivo "quiproquó" que faz parte do nosso cotidiano, como fato e vocábulo...
         No entanto, a mesma expressão foi usada no ramo farmacêutico, a partir do Renascimento, com sentidos opostos. No século 15 as confrarias ou as associações (secretas ou não) dos formuladores de remédios e poções costumavam elaborar compilações das fórmulas e, nessas, registravam as substâncias que podiam ser tomadas no lugar de outras sob o título positivo de "quid pro quo"; porém, do século 18 em diante, os boticários, de modo negativo, passaram a usar a mesma expressão para designar um engano na formulação dos medicamentos.
        É essa acepção de equívoco a que perdura entre nós e não nos faltam exemplos da precisão do termo para indicar situações nas quais o quiproquó vem à tona, especialmente quando se procura prescrever soluções ambíguas ou desacertadas para alguns dos males provocados pelo desequilíbrio social. Nos projetos e programas oficiais ou corporativos dirigidos à sociedade está tudo formalmente adequado, mesmo quando o conteúdo não tem resultado eficaz.
          É só prestar atenção aos discursos ou inflamadas justificativas autocomplacentes. "Ressurreição de epidemias? Culpa do povo que, tal qual um Jeca Tatu tardio, resiste ao que é bom para ele mesmo. Desemprego escandaloso? Simples componente do reordenamento da economia e do realinhamento do país na inevitável globalização que só os derrotistas não percebem que nos favorecerá. Indigência educacional, fome, miséria urbana e rural? Faz parte do processo de modernização de um país que, aos poucos, vai assumindo seu lugar de destaque na constelação de nações importantes. Violência sem controle? Consequência das ações dos defensores dos direitos humanos que impedem a retaliação indiscriminada e não são permeáveis aos eventuais excessos inerentes à ação repressora. Todos os planos estão corretos. Se alguma coisa não está dando certo é por mero acaso"...
      O mais do que bicentenário escritor francês Victor Hugo, poeta, romancista e teatrólogo, combatente pela República (da qual foi deputado e senador, tendo antes sido exilado por oito anos por ordem de Napoleão III), precisa ser relembrado mais do que a indignação que aparece no aclamado Os miseráveis.
       Visite-se, para afastar alguns aparentes qüiproquós, aquilo que Hugo sabiamente escreveu na peça Ruy Blas: "Acaso? Iguaria que os patifes confeccionam para os tolos que a comem".

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