Humana armadilha

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           Há uma hilariante é inesquecível tirinha entre as milhares desenhadas pelo argentino Joaquin Salvador Lavado, o Quino, na qual, usando da aguda - embora atordoada - inteligência de Mafalda (sua mais conhecida personagem, invernada em 1963), ele consegue expressar com clareza alguns dos meandros que envolvem a existência humana. No primeiro quadrinho dessa tira Mafalda se aproxima de uma loja de esquina onde há um idoso chaveiro; no quadrinho seguinte entra no prédio e, sarcasticamente, diz a ele: "Bom-dia. Quero uma chave da felicidade"; sem demonstrar espanto, no terceiro quadrinho ele dirige um olhar complacente e responde: "Com certeza, menina. Traz o modelo?"; sai ela então da loja, caminhando sem graça e pensando: "Espertalhão o velhinho!"
            O modelo, onde está o modelo? Ou, melhor ainda, existiria um modelo? Precisa haver? Múltiplas são as pistas sobre o lugar onde se encontra a "chave da felicidade" e, claro, o provável modelo; alguns o situam na arte desprendida, outros na religião obsessiva, muitos no consumo desvairado, vários na política indolente, poucos na filosofia militante, inúmeros no trabalho insano, raros na dignidade coletiva.
         O que seria esse almejado horizonte que uma chave desconhecida, distante ou simplesmente invisível, poderia proporcionar o acesso? Felicidade pode ser estado de espírito, e não uma situação material; pode, ainda, despontar como um sentimento passageiro ou um devaneio fugaz. Marcando-se em nossa experiência sempre como uma ocorrência episódica, remete-se, talvez, ao terreno ocupado por uma sabedoria misteriosa contida na frase do escritor e polemista francês Barbey d'Aurevilly - que no século 19 era, curiosamente, um difusor e admirador do satanismo - ao dizer que "o prazer é a felicidade dos loucos; a felicidade é o prazer dos sábios".
           Qual seria, então, a carga de verdade contida na advertência feita pelo muçulmano Saadi, escritor lírico cujas obras foram as primeiras poesias persas a serem traduzidas para o Ocidente Moderno? Em meados do século 13, após ter sido libertado das mãos dos cruzados e se enclausurado voluntariamente em uma espécie de convento, escreveu (em pleno deserto!) a coletânea O jardim das rosas e nela registrou (indicando uma das chaves possíveis): "Lamente por aquele que julga haver achado a felicidade, inveje aquele que a procura e a abandonará, tão logo a encontre. A única felicidade consiste em esperar a felicidade".
       Por isso, a ideia de chave lembra uma reflexão de Gilberto Amado, diplomata brasileiro eleito membro imortal da Academia Brasileira de Letras no mesmo ano em que nascia Mafalda; em meio à extensa obra memorialista e ensaística do escritor sergipano destaca-se o livro inicial, A chave de Salomão (1914), um elogio ao espírito contemplativo e nesse ensaio ele afirma que "a felicidade é sinônimo de tranquilidade; ser feliz é ser tranquilo".
         Ser feliz é ser tranquilo! Felicidade como estado de serenidade, como a capacidade de atravessar as perturbações cotidianas sem resvalar para o desespero; felicidade como possibilidade de amainar a consciência e repousar a mente muitas vezes atormentada; felicidade como vivência plácida, mas distante do imobilismo d bem próxima da paz. Porém, nova complicação, o que é estar em paz?
         Felicidade! Sensação primordial ou meta inalcançável, conquista paulatina ou ingenuidade pueril? Liberdade de busca ou armadilha romântica? Se o soubéssemos, seríamos mais felizes?

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