Está faltando espanto!

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Começos do Terceiro Milenio! Profusão exuberante de tecnologia, patamares científicos inéditos, resultados econômicos estrondosos, produção magnífica de bens de consumo. Olhando só para as conquistas, tudo é superlativo!
Nos últimos 50 anos tivemos mais desenvolvimento incentivo do que em toda a história anterior da humanidade; em outras palavras: aceitando a hipótese de que há aproximadamente 40.000 anos somos homo sapiens sapiens, apenas nas 5 décadas mais recentes acumulamos mais estruturas de conhecimento e intervenção no mundo do que em todos os 39.950 anos anteriores.
A cada dia nos deparamos com novas invenções, novos produtos, novos modos de fazer e interpretar; em cada um desses dias precisamos nos acostumar com as novidades, aprender a lidar com elas e, mais do que tudo, acabamos por nos submeter ao ritmo que elas impõem. De alguma maneira, essa overdose da novidade induz a uma certa insensibilização dos sentidos e dos sentimentos, de modo que se acaba por considerar todo esse redemoinho cotidiano como sendo corriqueiro e "normal".
Parece até que uma nova e tácita norma social despontou: fica proibido manifestar admiração exagerada ou rejeição camuflada pela existência de produtos resultantes das robustas vitórias da racionalidade técnica e mercantil. Se, até há pouco, o pedantismo consumista se encarnava não posse de bens diferenciais ("Eu tenho isto e você não tem; então, sou melhor que você"), agora, mudou o foco. A superioridade daqueles que já têm de tudo se expressa não mais na posse de um objeto, mas, antes, na simulação de que tal objeto é familiar e, mais ainda, de uso corriqueiro no dia a dia. Afinal, surpreender-se com a invenção de algo ("Você ainda não conhece?") seria indício de desatualização informática; já a rejeição do uso ("Você ainda não utiliza?") sinalizaria arcaísmo mental é uma senil pré-modernidade.
Essa é uma imensa confusão entre o disponível e o supérfluo. Não é à toa que Eurípedes, o magistral tragediógrafo grego do século 5 a.C., vivendo num período de extensa abundância de recursos exclusivos para as elites (tal como hoje, entre nós) tenha perguntado: "O que é a abundância? Um nome, nada mais; ao sensato basta o necessário".
A sensatez de muitos esta curvando-se ao tresloucado modismo tecnólatra que, como ponto de partida, incorpora procedimentos autoritários e imperativos (até facistas), subordinando a liberdade de escolha a uma compulsão irrefletida. O pensador francês contemporâneo Roland Barthes, mais conhecido fora do mundo acadêmico por ter escrito Fragmentos de um discurso amoroso - e que, a propósito, produziu um ensaio demolidor de certezas chamado O sistema da moda -, alertou-nos para o fato de que "o fascismo não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer".
A questão não é, de forma alguma, abandonar a tecnologia e seus resultados positivos; isso seria uma estupidez. O que não se pode perder, porém, é a capacidade de ficar espantado; essa perda nos leva a achar tudo muito óbvio é rotineiro, impedindo a admiração que conduz à reflexão criadora.
É o famoso (e ambíguo) "parar para pensar" e, claro, admirar.
    É necessário não menosprezar a atitude inovadora daqueles que, como as crianças, ainda se admiram que as coisas sejam como são, em vez de fingir que espantoso seria se não fossem assim...

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