A mídia como corpo docente

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     As sociedades ocidentais contemporâneas transferiram, pouco a pouco, os cuidados com as crianças das famílias para as escolas; a formação e informação cognitiva, moral, sexual, religiosa, cívica etc., passou a ser entendida como uma tarefa essencial do espaço escolar, em substituição a uma convivência familiar cada vez mais restrita em qualidade e quantidade.
     Por isso, quando nos aproximamos do início do ano letivo, não são só aulas que chegam; na prática, é a entrada ou reentrada da nossa infância e adolescência no território que se supõe seja o mais adequado para elas estarem ("em vez de ficarem nas ruas ou shoppings"...). Há, assim, uma crescente sacralização do espaço escolar como sendo um lugar de proteção/formação/salvação e, por consequência, uma maior responsabilização das educadoras e dos educadores na guarida das gerações vindouras; no entanto, essa responsabilização beira a culpabilização, como de a escola e os profissionais nela presentes tivessem, isoladamente, o exclusivo dever de dar conta de toda a complexidade presente na educação da juventude.
      É preciso, porém, observar um fenômeno que explodiu nos últimos 20 anos: uma criança dos centros urbanos, a partir dos dois anos de idade, assiste, em média, três horas diárias de televisão, o que resulta em mais de mil horas como espectadora durante um ano (sem contar as outras mídias eletrônicas como rádio, cinema e computador); ao chegar aos sete anos, idade escolar obrigatória, ela já assistiu a mais de cinco mil horas de programação televisiva. Vamos enfatizar: uma criança, no dia em que entrar no Ensino Fundamental, pisará na escola já tendo sido espectadora de mais de cinco mil horas de televisão!
     Quando pensamos no campo de formação ética e de cidadania, os problemas na educação brasileira não são, evidentemente, um ônus a recair prioritariamente sobre o corpo docente escolar; há um outro corpo docente não escolar com uma estupenda e eficaz ascendência sobre as crianças jovens.
      Cinco mil horas! Imagine-se a responsabilidade daqueles é daquelas que produzem as programações e as publicidades! Pense-se no impacto formativo sobre os valores, hábitos, normas, regras e saberes que os profissionais dessa área de mídia têm sobre os infantes e sobre a chamada "primeira infância", época na qual uma parte do caráter permanente da pessoa se estrutura!
     É claro que isso obriga também aos que lidam com educação escolar rever os objetivos e a metodologia de trabalho; afinal, crianças pequenas não chegam mais à escola sem alguma base de conhecimento e informação científica e social, dado que têm outras fontes de cultura no cotidiano. Entretanto, essa constatação não desobriga a mídia a pensar e repensar o seu papel social: valores discricionários, erotização precoce, consumismo desvairado, competição e não cooperação, individualismo etc., podem estar sendo "ensinados" sem que os na mídia envolvidos deem conta disso.
     Vale, por isso, lembrar o que, em 1980, nos contou Adélia Prado em Cacos para um vitral (com seu estilo simuladamente ingênuo e deveras percuciente), descrevendo uma cena familiar noturna em uma sala em pequenina cidade das Minas Gerais, quando fictícios personagens de novela borrifavam seus efeitos concretos na vida real: "Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde pediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim"...

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