A ameaçadora consciência letárgica

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     Em momentos tão estonteantes como estes em que nos enredamos, apalermados pelos inaceitáveis efeitos resultantes da imensa capacidade humana para produzir catástrofes e terrorismos inúteis, vem à tona uma atitude expectante, que oscila entre o cansaço oriundo da reiteração cotidiana do horror e o torpor decorrente da frágil eficácia das soluções apresentadas. O tempo todo, e sem muita reflexão, se é convocado a tomar uma posição, provocado a ficar do lado de alguns prováveis ofendidos, intimado a rejeitar a existência de supostos culpados, e, até, a assimilar instantaneamente a heróica exaltação do antagonismo entre autores e vítimas (sem ter muita clareza sobre quem é quem).
      Quando as situações ficam assim, marcadas por uma estranha evidência e pelo imediatismo aderente, é preciso recorrer ao espírito paciente e sábio que milenarmente emana do Oriente mais longíquo; certa vez, ao ser perguntado por um jornalista sobre qual a opinião que tinha sobre a Revolução Francesa eclodida em 1789, o líder chinês Mao Tsé-Tung (1893-1976) disse: "É muito cedo para avaliar"...
      É muito cedo para avaliar! E também é muito cedo para adjetivar, muito cedo para concordar, muito cedo para aquilatar, muito cedo para apreciar, incorrendo em leviana postura que traslada a consciência crítica ao pântano da conformidade, submetendo o livre-pensar ao arbítrio de uma única e hegemônica explicação é justificativa. O desejo de vingança é óbvio em excesso e não deve ser afagado como sendo um direito inalienável do agredido, a ponto de transformar-se em conivência como massacre de muitos dos já massacrados no dia a dia, meros sobreviventes de uma ideia fraturada de humanidade.
     Por isso, nada pode ser aceito como tão óbvio, nem a necessidade obsessiva de guerra (santa ou não), nem os rompantes e ameaças dos poderosos, nem as manifestações de inocência e desagravo dos ocultos bandidos, pois tais expressões, ao serem digeridas sem indagações, objeções e suspeitas, conduzem à subserviência mental e ao consentimento ingênuo.
      A história (do Ocidente ou do Oriente) nos ensina a não querer glorificar os morticínios, mesmo sob pretexto de serem justos, pois, como lembrou o escritor Henri Barbusse em sua vivência francesa da Primeira Guerra Mundial, "seria um crime mostrar os lados bons da guerra, ainda que ela os tivesse!"; afinal, as mortandades belicistas só podem ser julgadas na sua inteireza em função do critério estabelecido pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht: "as mães dos soldados mortos são os únicos juízes da guerra", o que retoma a advertência feita pelo historiador grego Heródoto (século 5 a.C.) ao dizer que "ninguém é tão insensato que prefira a guerra à paz; em tempo de paz, os filhos enterram os pais; em tempo de guerra, os pais enterram os filhos".
     A esperança não pode putrificar, sepultada, também ela, sob os tétricos escombros dos, outrora, símbolos da desatenta e fictícia invulnerabilidade; não é possível aceitar sem resistência a pregação do assassinato da unicidade do humano e a profanação da vida em suas múltiplas formas.
      A autofagia é um perigo sempre iminente e, por isso, o teólogo francês do século 18 Fénelon (exilado pelo Rei Luís XIV em função das inúmeras divergências que teve com o poder despótico) afirmava, com toda a razão, que "todas as guerras são civis, porque é sempre o homem contra o homem que derrama o seu próprio sangue, que despedaça as suas próprias entranhas".

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