Memórias de Marguerite...

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     Pensar o passado é mais do que lamentar algum tempo que já se foi ou inebriar-se pela sedução de um futuro incerto, é sempre bom recordar o afago de Marguerite Yourcenar (1903-1987) ao escrever que "quando se gosta da vida, gosta-se do passado, por que ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana".
      A romancista e dramaturga francesa (nascida, porém, em Bruxelas quando o século 20 era infante!) fez poesias (cf. O jardim das quimeras) reinterpretando os mitos do nosso longíquo passado grego e produziu sua mais famosa obra, Memórias de Adriano, quando o século chegava ao meio; morreu aos 84 anos, por pouco não alcançando o final do mesmo século com o qual quase juntos nascera.
     Qual passado não pode estar presente nas seculares memórias de Marguerite? Nos poucos treze anos que faltaram para ela atingir o final do século 20, o que Marguerite não viu?
     Não viu o massacre de estudantes em uma praça de Pequim (que, por distúrbio semântico ou ironia mística, ainda é chamada de Paz Celestial) e nem a invasão do Paraná (em uma operação alcunhado de Causa Justa) ordenada por um presidente norte-americano que depois foi à posse do filho para o mesmo cargo; não viu o Brasil latinamente estrear o impeachment presidencial.
      Não viu a queda do Muro de Berlim e a posterior reunificação das Alemanha; não viu, também, o começo da reaproximação das Coreias e a lamentável retomada dos confrontos entre israelenses e palestinos, apenas sete anos após a assinatura do Acordo de Paz que culminou com o Nobel para os signatários Yasser Arafat, Shimon Peres e Itzhak Rabin.
     Não viu o desmantelamento da União Soviética, com o fim do começo da necessária utopia socialista; não viu o Papa João Paulo II visitar Cuba, a convite do próprio Fidel Castro (participante contrito de uma espetacular missa em Havana), e nem o fechamento definitivo da Usina Nuclear de Chernobyl.
     Não viu a Guerra do Golfo quando, autorizado pela ONU, o Ocidente fez um ataque maciço e inclemente contra as forças de Sadan Hussein, para recuperar os campos de petróleo de um Kwait submetido a uma invasão iraquiana; não viu uma sangrenta é aterrorizante Guerra da Bósnia, entre sérvios, croatas e bósnios, o mais longo conflito bélico na Europa depois da Segunda Guerra Mundial e que, por não envolver a avidez do petróleo, permitiu que as grandes nações acompanhassem sem intervir de fato.
      Não viu a emocionante eleição de Nelson Mandela (depois de quase 28 anos na prisão) para presidir à África do Sul no primeiro governo após o término formal do apartheid; não viu José Saramago receber o Nobel de Literatura, inédito para um escritor de língua portuguesa, e nem alguns ideais nazista ressurgirem em determinados focos na Europa que, criando uma União Europeia, lançou uma moeda única.
      Nas suas parciais memórias, Marguerite não viu a ovelha Dolly e nem se assustou com os desdobramentos possíveis da clonagem; não falou a partir de um celular e nem navegou na internet, não ingeriu alimentos geneticamente modificados, não ouviu música em um CD, não presenciou a regularização (em alguns países) da eutanásia e da união civil entre pessoas do mesmo sexo, não acompanhou a sonda em Marte (com hipótese de outras formas de vida) e não chorou a morte de Antônio Carlos Jobim, Frank Sinatra e Madre Teresa de Calcutá.
     Isso tudo apenas no intervalo entre a morte de Marguerite e o final do século 20! Para nós, foram "presentes" e tal como sobreviveram na memória humana poderiam ser outros; dependerão, sempre, do ponto de vista de quem lembra.
     Por isso, precisa ficar memorável a ideia do contemporâneo William Faulkner: "Ontem só acabará amanhã, e amanhã começou há dez mil anos"...

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