Os dentes do tempo

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      No primeiro século de nossa era, o latino Ovídio escreveu tempus edax rerum (tempo devorador das coisas), retomando uma epigrama do poeta lírico grego Simónides (5 a.C.), para o qual "o tempo de dentes afiados tudo consome, até as coisas mais fortes". Logo no início do século 17, Shakespeare, na comédia Medida por medida, traz de volta a expressão "os dentes do tempo". O tempo devora certezas, materialidades, expressões, relações, e anuncia rupturas e esquecimentos.
       Não precisamos recorrer somente aos clássicos para tal circunstância perceber; situações simples e pueris nos mostram isso. Exemplos? Para esses meninos e meninas que estão agora começando a adolescência, alguns chavões que nós, mais idosos, usamos no dia a dia (originados das nossas modernidades tecnológicas do século 20), não fazem o menor sentido! Em um diálogo (diálogo?) ele fala alguma coisa que não ficou clara e você diz: Não caiu a ficha... Ele fica olhando; de qual ficha está falando? Ora, ele já cresceu usando cartão telefônico, e, se tiver menos de 15 anos de idade, nunca viu uma ficha. Como é que vai saber o que você quer dizer? E quando se pede, irritado, para eles colocarem o telefone "no gancho"? Que gancho? Ou, pior, descarga no banheiro? Antigamente, isto é, há duas décadas, quando uma conversa estava chata, olhava-se para o interlocutor e se dizia: Ah, vira o disco! E para os infantes, que só conhecem o CD (com apenas um lado tocável) ou DVD e jamais utilizaram um disco de vinil? Eles não têm ideia do que se está falando... Inúmeras crianças e jovens nunca viram vários objetos do cotidiano de adultos comos quais convivem (convivem?) e isso é de dez anos pra cá. Nós vimos e nem sempre nos acostumando ou sabemos lidar com eles; o pior é que, com frequência, nos distraímos da passagem e do tempo.
      Outro exemplo? A maior parte dessas crianças com menos de 12 anos de idade, nunca viu uma máquina de datilografia; elas não sabem o que é! Muitos passamos horas e horas: a, s, d, f, g, c, l, k, j, h, a, s, d... Atenção: até uma década e meia atrás você era selecionado no trabalho com o exame de datilografia. Não falamos aqui do século 19, e sim de "agora mesmo", quando datilografia era um diferencial de formação (ou, como se diria mais recentemente, um diferencial competitivo), a tal ponto que a fala de um pai ou uma mãe foi monocórdica para muitos de nós: você tem que fazer curso de datilografia, senão você não vai ser ninguém, você não vai dar para nada na vida... Quantos fizeram curso de datilografia, guardaram até o diplominha, puseram num quadrinho e penduram na parede. Quanto vale hoje um diploma de datilografia?
      Esse é um lado razoavelmente humorado; porém, os dentes do tempo (e da falta dele) deglutem vorazes também as afetividades. Em uma pesquisa feita há pouco nos centros econômicos mundiais mostrou-se que, por dia, o convívio entre pais executivos e seus filhos não ultrapassava a 5 minutos, inclusive no Brasil. O número de vezes e a intensidade em que o pai e a mãe encontra o filho é muito rápido; há, inclusive, um fato tristemente inédito: nas metrópoles, somos a primeira geração de adultos que sai de casa mais tarde que os filhos. Por muitos e muitos anos, séculos até, os adultos acordamos as crianças (filho, vai para a escola, toma café, toma banho, olha a camiseta); hoje, o filho levanta sozinho e sai às 6h30 ou 6h45 na van ou no ônibus, e o pai e a mae, acordando mais tarde, saem para trabalhar às 7h30, 8h... Assim, essa família quase não se encontra, filhos são "criados" por outras pessoas e isso resulta em um impacto negativo na consolidação de uma comunidade afetiva.
       O tempo não é só passagem; é, também, esgotamento, restando para muitos apenas alguns horizontes de perplexidade tardia.

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