Janus à espreita

51 3 0
                                    

    Na religião romana da Antiguidade há um Deus chamado Janus, sempre representado por uma cabeça com dois rostos opostos, de modo a olhar para frente e para trás; essa divindade era considerada protetora dos começos, isto é, da hora inicial do dia e do primeiro mês do ano (Januarius), pois, assim, abria e fechava todas as coisas e guardava o passado (ano findante) e o futuro (ano novo).
        Para poder proteger inícios e términos vitais, o francês Marcel Proust publicou nas primeiras décadas dos século 20 (usando primeira pessoa e produzindo um monólogo interior em 16 volumes!) uma das mais importantes obras de toda a Literatura: Em busca do tempo perdido. É provável que o escritor quisesse viver no romance aquilo que acreditava, ao afirmar que "certas recordações são como os amigos comuns: sabem fazer reconciliações".
          Recordações! Olhar para trás e reconciliar o futuro! É claro que o fundamental não é procurar o tempo perdido, mas, isso sim, aquilo que no tempo perdeu-se e não deveria tê-lo feito; lembramos o que já se foi para orientar o desejo daquilo que deve vir. No entanto, a maior parte das pessoas em nossa época vem se preocupando mais com as metas (que são pontos de chegada) do que com os princípios (que são pontos de partida).
         Quais deveriam ser, então, os nossos valores? Garantir a integridade da vida, promover a sinceridade das relações interpessoais, realizar a lealdade fraterna e fortalecer a fidelidade ao solidário? Os valores são exatamente os princípios (os começos protegidos por Janus...) e constituem o amálgama que agrega e orienta as atitudes individuais para a efetivação das intenções e finalidades de uma coletividade; valores são referências de conduta (grupal e pessoal) em torno das quais um coletivo compreende é legítima o exercício de suas atividades conjuntas, valores representam a possibilidade de convergência honesta dos propósitos usualmente dispersos na convivência multifacetada e, quando apropriados (tornados próprios) por cada um, diminuem o risco de artificializar e retirar autenticidade dos contatos presentes no cotidiano.
        Assim caminha a humanidade... Caminha junta? Caminha camuflada e amedrontada? Caminha agora mais sozinha do que antes? Caminha em direção ao outro? Basta um exemplo a bem recordar: há poucas décadas, independentemente do tamanho da cidade, quando alguém, tarde da noite, saia a pé de algum lugar (trabalho, escola, igreja, clube, etc.) e caminhava só em direção ao próprio lar, ouvir passos de outra pessoa representava um certo alívio: Agora vou ter companhia! E os dois seguiam andando juntos... Hoje, quando, na mesma circunstância, são ouvidos ruídos humanos, já se pensa: Meu Deus do céu, vem vindo alguém...
        O que aconteceu? Qual princípio foi violentado? Antes o outro era até um amparo; tínhamos medo, quando muito, de alma de outro mundo. Do que se tem medo agora? Do outro, porque, em vez de ser alguém que pode te proteger, é eventual ameaça feroz.
      No século anterior ao de Proust, o poeta inglês George Gordon Byron nos desafiava, dizendo que "a recordação da felicidade já não é felicidade; a recordação da dor ainda é dor". Por isso, é preciso reviver o relato inserido no princípio da Bíblia judaico-cristã no qual há um trecho conhecido (e muito esquecido): logo após a narrativa do primeiro assassinato e o consequente estilhaçamento original da fraternidade (a ser refeita), o Criador procura o criminoso que, cinicamente, alega isenção. "O Senhor disse a Caim: 'Onde está o teu irmão Abel?' 'não sei', respondeu ele. 'Serei eu o guarda de meu irmão?'"
     Pergunta e resposta continuam ecoando nestes novos recomeços...

Não nascemos prontos!Onde histórias criam vida. Descubra agora