gelo

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Atendendo a pedidos:

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Pelos olhos de Juls...

Já reparou que durante o ato de escovar os dentes a gente pensa em tudo que fez e tem que fazer, o que nos incomoda, resoluções para problemas, listas de compras do mercado. Parece um ato banal, mas eu acredito que seja um dos momentos mais importantes do dia. Tanto a primeira quanto a última escovada são a chave para desenvolver teorias, como a que eu estava desenvolvendo na minha mente naquele segundo, enquanto meu molar recebia uma passada raivosa de cerdas. Eu estava tão dentro da minha cabeça que só me dei conta de que estava naquele dente há muito tempo quando senti um gosto metálico na boca. Ahhh que ótimo, Juliana. Você tá pensando tanto nela que até seu dente tá te avisando que já deu!

Mas convenhamos que não é todo dia que um tipo de encontro daqueles acontece. Tudo bem, no nosso caso, foram três encontros, três colisões perigosas se é que eu poderia falar. Ela veio do nada, trombou em mim e me deixou no chão, uma das vezes foi literalmente no chão. Minha vida não era nada convencional, eu tinha muitas histórias para contar, para superar e muitos fantasmas do passado me perseguindo, mas aqueles olhos azuis não me deixariam em paz, pois mesmo estando a quilômetros daquela mulher, eu podia sentir seu olhar perfurando a minha pele.

Desde o primeiro dia em que a vi, senti um calafrio, que subia minha espinha e cobria meu corpo de uma sensação gelada. Parecia que eu estava passando uma pedra de gelo por todo a minha coluna, meus braços, meu pescoço. A principio me assustei, pois senti aquilo estando a metros de distância daquela linda mulher, sem nem mesmo ter olhado diretamente em seus olhos, mas quando o fiz, parecia que meu interior tinha congelado e eu precisava me aproximar para não morrer de frio. Eu precisava toca-la, quase como se tivesse que aquece-la.

E agora estava eu, no meu banheiro de azulejos marrons, de uma década perdida na história americana, em um cortiço esquecido pela classe dominante, infestado de pessoas marginalizadas pela sociedade e baratas do tamanho de ratazanas. Minha existência não era significativa, eu não era nada para aquele mundo. Já pensei em desistir algumas milhares de vezes. Sempre me questiono " o que eu ainda estou fazendo aqui?", mas sigo nessa minha vidinha sem valor. Eu não tinha nada mais, somente as lembranças do que já tinha sido bom e me prometi que não me apegaria tanto a nada, pois me apegar significava que doía quando eu tinha que deixar tudo para trás.

Não gosto de ser a vítima. Aprendi com a minha avó que a vida não nos dá desafios que não podemos ultrapassar, mas confesso que não achei que aos 28 anos de idade teria pulado tantos obstáculos. Aprendi com ela também o que hoje eu fazia para me sustentar. Minha avó foi imigrante e tinha uma ascendência oriental, o que lhe deu poucas opções na "terra prometida". Ela contava sempre como tinha conhecido meu avô, um homem latino, também imigrante, mas de boa família, que vinha sempre ao restaurante de comida asiática no qual ela trabalhava. Contava que ele flertava com ela e pedia que sempre ela o servisse, trocavam sorrisos, olhares penetrantes e ela suspirava ao ve-lo partir. Era quase um sonho, mas me lembro como se fosse hoje que ela repetia: o que faltava era que ele a tocasse, que suas peles se encontrassem. E assim foi, em uma noite fria de Nova Iorque, ele a convidou para um drink após o turno no restaurante. Depois de uma noite cheia de galanteios, ele finalmente a beijou. O romance tomou proporções e ganhou o coração dos dois, mas a vida não era fácil e meu avô vivia com dores pelo corpo, pois trabalhava muitas horas para manter uma vida minimamente decente. A única forma de relaxa-lo e quitar suas dores era quando minha avó o massageava. Ela sempre afirmou que o toque e a troca de energia era o que salvaria a humanidade. Minha avó era ingênua e infelizmente a realidade não foi tão boa para ela quanto ela merecia. Mas nunca se fez de vítima e isso, eu levava comigo.

Por isso ainda me incomodava lembrar do olhar da "senhorita Valentina", metida a besta e se achando a superior. Tenho vontade de tirar dela a força aquela aura de dona do mundo todo. Nas três vezes, eu apenas queria entender aquele frio que sentia, mas eu já percebi que não será algo que vou explorar, e talvez nem deva, ainda mais depois daquele telefonema que recebi. Acho que meus dias de calmaria estão contatos.

Hoje, uma semana depois do último encontro com Valentina, lá estava eu sentada no metrô, chegando no meu trabalho. Provavelmente não a encontraria mais, afinal acho que a assustei ao ser tão direta. Que que você tava pensando também? Que falaria queria senti-la e ela responderia, claro...pois não...com certeza? Você é uma imbecil também. Mas espero que não a veja, pois não sei com que cara iria encara-la. Não tenho nada que falar com gente desse tipo. Eu não sou nada nem ninguém pra essa mulher, apenas o que ela demonstrou que eu era: uma serviçal. E com esse pensamento me dirigi para o saguão VIP, lugar onde eu me sentia quase segura para fazer algo que gostava. Durante um bom tempo, fiz "serviços" dos quais não me orgulhava e minha vida se complicou de tal forma, que hoje eu dava graças a Deus em ter que lidar com riquinhos patéticos com suas malas de marca ao invés de traficantes e agiotas. Agradeço a minha mãe e ao meu irmão por essa passagem deplorável da minha história, onde quer que eles estejam.

A tarde passava em um ritmo lento. Alguns clientes eram mais faladores que outros, alguns um pouco mais abusados, mas nenhum deles me passava aquela vontade de sentir a pele sob os meus dedos. Eu queria aquele calafrio. Juliana, não fala besteira. Esquece isso e se concentra no seu trabalho, porque você não pode perder esse bico se não tudo vai mudar de vez. Quando meu turno se aproximava do fim e eu poderia retornar a minha existência praticamente insignificante aos olhos dos outros, ouvi passos de alguém se aproximando e logo em seguida, duas batidas na madeira da porta. Eu continuei limpando a cadeira de massagem e me mantive de costas, ainda perdida em meus devaneios.

- Me dá um minuto, ok? Já vou te atender.

- Eu aguardo, Juliana.

Não podia ser. Aquela voz...



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Opa. Desculpem a demora. Semana cheia, mas prometo não demorar tanto para o próximo capítulo, que vai ser recheado!

Capítulo curto dando um pouco de contexto na vida da Juliana.

Brigada pela leitura e espero que estejam gostando. Deixem comentários e o que querem para a frente. Talvez eu aceite sugestões heheheh ...=P



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