Semeai promessas: a ninguém causam desfalque, e o mundo é rico de palavras. A esperança quando outros nela creem faz ganhar muito tempo.
Ovídio, A arte de amarAo morreres, dota a algum colégio ou a teu gato.
PopeSganarelo – De todo a parte vem gente procurar-me, e se as coisas continuarem assim, sou de parecer que de uma vez devo dedicar-me à medicina. Acho que de todos os ofícios é este o preferível, porque, ou se faça bem ou mal, sempre no fim há dinheiro.
Molière, O médico à força
Nascera Cirino de Campos, como dissera a Pereira, na província de São Paulo, na sossegada e bonita Vila de Casa Branca, a qual demora umas cinquenta léguas do litoral. Filho de um vendedor de drogas, que se intitulava boticário e a esse ofício acumulava o importante cargo de administrador do correio, crescera debaixo das vistas paternas até a idade de doze anos completos, quando fora enviado, em tempos de festas e a título de recordações saudosas, a um velho tio e padrinho, morador na cidade de Ouro Preto.
Esse parente, solteirão, de gênio rabugento, misantropo, e dado às práticas da mais extrema carolice, recebeu o pequeno com mau modo e manifesto descontentamento, tanto mais quanto à presença de um estranho vinha interromper os hábitos de completa solidão a que se acostumara desde longos anos.
Era homem que trajava ainda à moda antiga, usando de sapatos de fivela, calções de braguilha, e cabeleira empoada com o competente rabicho.
A sua reputação de pessoa abastada era, em toda a cidade de Ouro Preto, tão bem firmada quanto a de refinado sovina, chegando a voz público a afirmar que o seu dinheiro, e não pouco, estava todo enterrado em numerosos buracos no chão da alcova de dormir.
– Meu amigalhote – disse o tal padrinho a Cirino, poucos dias depois da chegada –, fique sabendo que por qualquer coisinha lhe sacudo a poeira do corpo. Dê-se por avisado e ande direitinho que nem um fuso.
O menino, transido de medo, passou a tarde a chorar num canto sombrio da casa, onde relembrou, até lhe vir o sono, a alegre vida de outrora, os folguedos que fazia com os camaradas na viçosa relva do Cruzeiro, à entrada da Vila de Casa Branca e sobretudo os carinhos da saudoso mamãe.
Em seguida àquela admoestação preventiva fora o tio à casa de uns padres que tinham influência na direção do Colégio do Caraça e com eles arranjara a admissão do afilhado naquele estabelecimento de instrução.
Como finório que era, conseguiu este resultado sem muita dificuldade, pagando-o, a juros compostos, com tentadoras promessas.
– Por ora – resmoneou ele –, nada poderei fazer pela educação do rapaz; mas... enfim... um dia... estou já velho, e tratarei de mostrar que não me esqueci dos bons padres que tanto me ajudam hoje.
Lançada, assim, a eventualidade de uma verba testamentária, ficou decidida a entrada de Cirino na casa colegial.
O pressentimento da falta de proteção natural torna as crianças dóceis e resignadas. Também não tugiu nem mugiu o caipirazinho ao penetrar no internato em que devia passar tristonhamente os melhores anos da sua adolescência.
Ótimo negócio fizera incontestavelmente o velho tio. Ia tão somente desembolsando boas palavras e, por estar agarrado à vida, chegou até a levar ao cemitério dois dos padres que se haviam prendido às esperanças de valiosa recordação.
Afinal como tinha por seu turno que pagar o tributo universal, um belo dia morreu quando menos se esperava, deixando muito recomendado um seu testamento, que foi, com efeito, aberto com sofreguidão digna de melhor êxito.