III. O doutor

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Semeai promessas: a ninguém causam desfalque, e o mundo é rico de palavras. A esperança quando outros nela creem faz ganhar muito tempo.
 Ovídio, A arte de amar

 Ao morreres, dota a algum colégio ou a teu gato.
 Pope

 Sganarelo – De todo a parte vem gente procurar-me, e se as coisas continuarem assim, sou de parecer que de uma vez devo dedicar-me à medicina. Acho que de todos os ofícios é este o preferível, porque, ou se faça bem ou mal, sempre no fim há dinheiro.
Molière, O médico à força



Nascera Cirino de Campos, como dissera a Pereira, na província de São Paulo, na sossegada e bonita Vila de Casa Branca, a qual demora umas cinquenta léguas do litoral. Filho de um vendedor de drogas, que se intitulava boticário e a esse ofício acumulava o importante cargo de administrador do correio, crescera debaixo das vistas paternas até a idade de doze anos completos, quando fora enviado, em tempos de festas e a título de recordações saudosas, a um velho tio e padrinho, morador na cidade de Ouro Preto.

Esse parente, solteirão, de gênio rabugento, misantropo, e dado às práticas da mais extrema carolice, recebeu o pequeno com mau modo e manifesto descontentamento, tanto mais quanto à presença de um estranho vinha interromper os hábitos de completa solidão a que se acostumara desde longos anos.

Era homem que trajava ainda à moda antiga, usando de sapatos de fivela, calções de braguilha, e cabeleira empoada com o competente rabicho.

A sua reputação de pessoa abastada era, em toda a cidade de Ouro Preto, tão bem firmada quanto a de refinado sovina, chegando a voz público a afirmar que o seu dinheiro, e não pouco, estava todo enterrado em numerosos buracos no chão da alcova de dormir.

– Meu amigalhote – disse o tal padrinho a Cirino, poucos dias depois da chegada –, fique sabendo que por qualquer coisinha lhe sacudo a poeira do corpo. Dê-se por avisado e ande direitinho que nem um fuso.

O menino, transido de medo, passou a tarde a chorar num canto sombrio da casa, onde relembrou, até lhe vir o sono, a alegre vida de outrora, os folguedos que fazia com os camaradas na viçosa relva do Cruzeiro, à entrada da Vila de Casa Branca e sobretudo os carinhos da saudoso mamãe.

Em seguida àquela admoestação preventiva fora o tio à casa de uns padres que tinham influência na direção do Colégio do Caraça e com eles arranjara a admissão do afilhado naquele estabelecimento de instrução.

Como finório que era, conseguiu este resultado sem muita dificuldade, pagando-o, a juros compostos, com tentadoras promessas.

– Por ora – resmoneou ele –, nada poderei fazer pela educação do rapaz; mas... enfim... um dia... estou já velho, e tratarei de mostrar que não me esqueci dos bons padres que tanto me ajudam hoje.

Lançada, assim, a eventualidade de uma verba testamentária, ficou decidida a entrada de Cirino na casa colegial.

O pressentimento da falta de proteção natural torna as crianças dóceis e resignadas. Também não tugiu nem mugiu o caipirazinho ao penetrar no internato em que devia passar tristonhamente os melhores anos da sua adolescência.

Ótimo negócio fizera incontestavelmente o velho tio. Ia tão somente desembolsando boas palavras e, por estar agarrado à vida, chegou até a levar ao cemitério dois dos padres que se haviam prendido às esperanças de valiosa recordação.

Afinal como tinha por seu turno que pagar o tributo universal, um belo dia morreu quando menos se esperava, deixando muito recomendado um seu testamento, que foi, com efeito, aberto com sofreguidão digna de melhor êxito.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora