XVI. O empalamado

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Ao homem não faltam importunações quanto à vossa capacidade, bem a conhecemos.
Molière, O médico à força



Conforme o prometido, trouxe Pereira a rede para a sala dos hóspedes e, encetando um modo de vigilância muito especial ainda que perfeitamente inútil em relação à pessoa suspeitada, associou os sonoros roncos do valente peito à ruidosa respiração de Meyer.

Se, contudo, não tivessem seus olhos a venda da confiança ou, melhor, se o sono não os acometesse sempre com tamanha imposição, decerto em breve houvera estranhado a cruel agitação em que vivia Cirino e que este não podia mais encobrir.

Na verdade, o modo por que o infeliz mancebo passava as noites era de fazer nascer suspeitas no espírito mais indiferente e desprevenido. Ou se revolvia na cama, dando mal abafados suspiros, ou então saía para o terreiro, onde se punha a passear e a fumar cigarros de palha uns após outros, até que os galos, alcandorados na cumeeira da casa e nas árvores mais próximas, anunciassem as primeiras barras do dia.

Desabrida paixão enchia o peito daquele malsinado; dessas paixões repentinas, explosivas, irresistíveis, que se apoderam de uma alma, a enleiam por toda a parte, prendem-na de mil modos e a sufocam como as serpentes de Netuno a Laocoonte. Conhecedor como era dos hábitos do sertão, do jugo absoluto dos preconceitos, do respeito fatal à palavra dada, antevia tantas dificuldades, tamanhos obstáculos diante de si, que, se de um lado desanimava, do outro mais sentia revoltado o nascente e já tão violento afeto.

– Deus me ajudará – pensava consigo mesmo. – O que só quero e a amizade de Inocência. Há dias que não a vejo... se não puder mais vê-la... Dou cabo da vida...

Sublevava-se o seu coração, girava-lhe o sangue com vertiginosa rapidez nas velas e vinha toldar-lhe a vista, trazendo ondas de rubro calor ao descorado rosto.

– Nossa Senhora da Abadia – implorava ele puxando os cabelos com desespero –, valei-me neste apuro em que me acho! Dai-me pelo menos esperanças de que aquela menina poderá um dia querer-me bem... Nada mais desejo... Possa o fogo que me consome abrasar também o seu peito...

Costumava a fervorosa prece dirigida à santa da especial devoção de toda a província de Goiás acalmar um pouco o mancebo, que alquebrado de forças pegava no sono para, instantes depois, acordar sobressaltado e cada vez mais abatido.

Também estava sempre de pé quando Pereira costumava saltar da rede.

– Oh! – observou ele da primeira vez, isto é que se chama madrugar.

– Pois é contra o meu costume – replicou Cirino. – Todas estas noites tenho passado mal...

– Na verdade vosmecê não está com boa cara...

– Creio que me entraram no corpo as maleitas.

– Essa é que é boa! Então o doutor foi emprestar da doente a moléstia?... Olhe, é preciso pôr-se forte, porque hoje mesmo há de lhe chegar uma boa máquina de doentes...

– Melhor...

– Já está tudo espalhado por aí da sua chegada e a romaria não há de tardar.

– Cá a espero...

– Naturalmente virá primeiro o Coelho... É boa ocasião de pagar a sua dívida... Não tenha receio de puxar mais no preço...

– Daqui mesmo pretendo despachar um próprio para me ver livre dessa obrigação...

– Isso mostra que o senhor é pessoa de brio... Não é como certa gente que conheço...

Ao dizer estas palavras, voltara-se Pereira para Meyer a contemplá-lo atentamente.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora