XIV. Realidade

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Cordélia – Há de o tempo desvendar o que hoje esconde a discreta hipocrisia.
Shakespeare, Rei Lear, Ato I



Depois que Cirino viu sumir-se Pereira com os dois companheiros além do laranjal da casa, seguindo em direção à roça por uma vereda pedregosa e cheia de seixos rolados, nos quais iam as patas dos animais batendo; depois que teve certeza de que ficara só naquela vivenda, entrou em grande agitação.

Ora, passeava pelo quarto rápida e inquietantemente; ora, media-o com passo lento em muitas direções; ora, enfim, saía para o terreiro e ali, com a cabeça descoberta, ficava a olhar atentamente para diversos lados, abrigando com a mão aberta os olhos, dos vivíssimos raios do sol.

Prometia o dia ser muito cálido. Por toda a parte chiavam as estrídulas cigarras, e ao longe se ouvia o metálico cacarejar das seriemas nos campos.

Às vezes, encarava Cirino o sol; depois tapava os olhos deslumbrados e, tomado de vertigem, voltava para a sala, onde recomeçava os seus passeios.

Por que, porém, não descansava o mancebo?

Entrando familiarmente pela sala adentro, os bacorinhos se haviam abrigado dos ardores do dia e, deitados debaixo de uns jiraus, ressonavam, presa de gostoso sono.

Tudo quanto vivia apetecia a sombra e o repouso. Fora, o sol reverberava violento em seus fulgores, e as sombras das arvores iam cada vez mais diminuindo. Até uma égua com o esguio e peludo potrinho deixara o distante pasto e viera abrigar-se, à proteção da casa, junto à qual parara já meio a cochilar.

À enervadora ação do calor estival, juntavam sua influência as monótonas modulações de umas chulas e modinhas, cantadas ao som da viola de três cordas pelos camaradas de Cirino, acomodados no rancho junto ao paiol de milho.

A tudo, entretanto, resistia o jovem, e com ascendente desassossego consultava o seu relógio de prata, tirando-o cada instante do bolso.

Passaram-se segundos, minutos e horas. Afinal, soltou ele um suspiro de alivio:

– Meio-dia!... Cuidei que nunca havia de chegar!...

Saindo todo animado para o terreiro, chamou com voz forte:

– Maria... Ó Maria Conga!...

Ninguém lhe respondeu. Só do lado da cozinha ladraram uns cães.

Depois de esperar algum tempo, rodeou Cirino toda a casa, como fizera com Pereira e, encostando-se à cerca que impedia a aproximação do lanço dos fundos, tornou a chamar:

– Ó Maria?... Maria!... Está dormindo, minha velha?

Vendo que os gritos ficavam sem resposta, saltou então o cercado e foi caminhando para a porta da cozinha, devagar, porém, e como que a medo.

– Ó Maria?!... Minha tia!... Olá! Ó de casa! – chamava ele.

Afinal, apareceu não a velha escrava, mas o anão Tico, que pareceu, com imperioso movimento de cabeça, indagar a causa daquele intempestivo alarma.

– Que é da Maria Conga? – perguntou Cirino chegando-se a ele.

Por meio de moderada gesticulação, mas muito expressivamente, deu Tico a entender que a preta fora ao córrego lavar roupa.

– E não há mais ninguém em casa? – inquiriu o outro.

Mostrou o anão, com singular expressão de orgulho e despeito, que ali estava ele e deitou um olhar de cólera para o imprudente curioso.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora