Considerai a arte da composição das asas da borboleta: a regularidade da escamas, cobrindo-as como se fosse penas; a variedade das cambiantes cores: a tromba enrolada, com que suga o alimento no seio das flores : as antenas, órgãos delicados do tato, que lhe coroam a cabeça, cercada de uma rede admirável de mais de mil e duzentos olhos...
Bernadino de Saint-Pierre, Harmonias da natureza
Meyer, que estava sentado na soleira da porta com as compridas pernas encolhidas, ergueu-se precipitadamente ao avistar Cirino e correu ao seu encontro.
Trazia o coração no rosto, um coração cheio de alegria e triunfo.
– Oh! Sr. Doutor – exclamou todo risonho –, venha, venha ver uma preciosidade... uma descoberta... espécie nova... não há em parte alguma... Ouviu? Coisa assim vale um tesouro... E fui eu que o descobri!... Nem sequer Juque me ajudou... pois estava deitado e dormindo... Não é verdade, Sr. Pereira?
– Veja – murmurava o mineiro –, que barulhada faz ele com o tal aniceto... Ao menos, se fosse um animal grande!
– É uma espécie... nova... completamente nova! Mas já tem nome... Batizei-a logo... Vou-lhe mostrar... Espere um instante...
E, entrando na sala, voltou sem demora com uma caixinha quadrada de folha de flandres, que trazia com toda a reverência e cujo tampo abriu cuidadosamente.
Da própria garganta saiu um grito de admiração, que Cirino acompanhou, embora com menos entusiasmo.
Pregada em larga tábua de pita, via-se formosa e grande borboleta, com asas meio abertas, como que disposta a tomar voo.
Eram essas asas de maravilhoso colorido; as superiores, do branco mais puro e luzidio; as de baixo, de um azul metálico de brilho vivíssimo.
Dir-se-ia a combinação aprimorada dos dois mais belos lepidópteros das matas virgens do Rio de Janeiro, Laertes e Adônis, estes, azuis como cerúleo cantinho do céu, aqueles, alvinitentes como pétalas de magnólia recém-desabrochada.
Era sem contestação lindíssimo espécime, verdadeiro capricho da esplêndida natureza daqueles paramos. Também Meyer não tinha mão em si de contente.
– Este inseto – prelecionou ele como se o ouvissem dois profissionais na matéria – pertence à falange das Helicônias. Denominei-a, logo, Papilio Innocentia, em honra à filha do Sr. Pereira, de quem tenho recebido tão bom tratamento. Tributo todo o respeito ao grande sábio Linneu – e Meyer levou a mão ao chápeu – mas a sua classificação já está um pouco velha. A classe e, pois, Diurna; a falange, Helicônia; o gênero Papilio e a espécie, Innocentia, espécie minha e cuja glória ninguém mais me pode tirar... Daqui vou, hoje mesmo, oficiar ao secretário perpétuo da Sociedade Entomológica de Magdeburgo, participando-lhe fato tão importante para mim e para a sábia Germânia.
Dizia Meyer tudo isto com legítima ufania e lentidão dogmática.
Depois, com mais volubilidade, e apesar de tropeçar amiudadas vezes em palavras, o que, para comodidade dos leitores, temos quase sempre deixado de indicar, continuou:
– Reparem, meus senhores, neste lepidóptero com os olhos cuidadosos da ciência. Tem quatro pés caminhantes: as antenas de terminação comprida e oval, cavada em forma de colher; os palpares maiores do que a cabeça e escamosos, tromba toda branca e lábio quase nulo. Não perdi nem sequer um pouco do seu pó, porque o pó, um só grão de pó, vale tanto como uma pena de pássaro, e a comparação é perfeita, visto como cada uma destas escamas, à semelhança das penas, é atravessada por uma traqueia, por onde circula o ar. Oh! Que achado! – prosseguiu ele. – Que triunfo para mim! A Sociedade Entomológica de Magdeburgo há de ficar orgulhosa... Sem dúvida alguma farão uma sessão solene, extraordinária. Mein Gott!... Estou que não posso de alegria... Também, daqui a três ou quatro dias, vou-me embora desta casa... ainda que cheio de saudades...
– Deveras? – atalhou Pereira – Vai partir?
– Sim, senhor. O meu itinerário é para Camapuã; depois, vou a Miranda e talvez Nioac... Hei de subir até ao Coxim e aí, ou embarco para Cuiabá no Rio Taquari, ou sigo por terra pelo Pequiri.
– E o senhor volta para sua pátria?
– Boa dúvida!... Daqui a ano e meio, pretendo apresentar a minha coleção toda arranjada à Sociedade Entomológica...
– Homem – observou Pereira com intenção que seu hóspede não podia nem de leve perceber –, eu quisera já estar nesse dia. Daqui a ano e meio, que voltas terá dado o mundo?...
– Terá percorrido – respondeu Meyer gravemente – dezoito signos do Zodíaco.
– Pois bem, eu queria ver isso... Já me tarda esse dia.
– Quando ele chegar – continuou o alemão com sinceridade e um tanto comovido –, hei de lembrar-me com gratidão do tratamento que recebi... nos sertões do Império... e hei de dizer... bem alto... que os brasileiros:.. são felizes porque são morigerados e têm muito boa índole... hospitaleiros como ninguém.
– Acrescente – interrompeu Pereira com algum azedume – que zelam com todo o cuidado a honra de suas famílias.
Obedeceu docilmente Meyer e repetiu palavra por palavra.
– E zelam com todo o cuidado a honra de suas famílias.
– Muito bem – replicou o mineiro –, diga isso, e o senhor terá dito uma verdade.