XVIII. Idílio

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Mas, que luz é essa que ali aparece naquela janela? A janela é o Oriente e Julieta o Sol. Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja a pálida Lua.
Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II 

Entretanto, desde algum tempo, sentia-se Virgínia agitada de mal desconhecido... Em sua fronte, não pousava mais a serenidade, nem o sorriso lhe pairava nos lábios... Pensa ela na noite, na solidão, e fogo devorador a abrasa toda.
Bernardin de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia



Decorreram sem novidade dias e dias uns após outros; Cirino diagnosticando e curando, ou melhor, receitando; Meyer aumentando cada vez mais a sua bela coleção entomológica, sempre feitorizado por Pereira, que cautelosamente tratava de mantê-lo no suspeito círculo da sua apertada vigilância.

Confidente de todos os infundados e mal empregados receios era Cirino.

– O alamão – dizia o mineiro – não me deixa pôr pé em ramo verde, mas também trago-o vigiado que é um gosto... Se desconfiasse, teria medo até da sua sombra... Estou em brasas... Não sei por que não chega o Manecão Doca... Quero arriar a carga no chão... Agora, mais do que nunca, devo casar Nocência... Estas mulheres botam sal na moleira de um homem. Salta! E ainda isto tudo não é nada.

– Então espera muito breve o Manecão? – perguntou o outro com ansiedade.

– Não pode tardar... por estes dois ou três dias quando muito... Vem de Uberaba e sem dúvida por lá arranjou todos os papéis... Dei a certidão do meu casamento... a do batismo da pequena... e adiantei dinheiro para as despesas... bem que ele refugasse meio vexado.

– Então está tudo decidido? – perguntou Cirino com vivacidade.

– Boa dúvida!... Já lhe tenho dito mais de uma vez. Hoje é coisa de pedra e cal... Se até trato o Manecão de filho... A honra desta casa é também honra dele.

– Mas sua filha?

– Que tem?

– Gosta dele?

– Ora se!... Um homenzarrão... desempenado. E, quando não gostasse, é vontade minha, e está acabado. Para felicidade dela e, como boa filha que é, não tem que piar... Estou, porém, certíssimo de que o noivo lhe faz bater o coração... tomara ver o cujo chegado!

Já nesse tempo, como dissemos, Inocência de todo se restabelecera, ainda que Cirino tivesse feito quanto possível render a enfermidade. Mas, quando o rubor da saúde voltou à acetinada cútis da sertaneja e o vigor ao esbelto corpo, não houve pretexto a que se apegar, e as entrevistas curtas e graves de médico foram cortadas, até mesmo para não desviar a atenção de Pereira da pessoa de Meyer.

Com o coração, pois, partido de dor, declarou que os e seus cuidados e presença se tornavam completamente desnecessários.

Seguiram-se então semanas inteiras, sem que pudesse por os ansiosos olhos na formosa namorada, e por tal modo se exacerbou a sua paixão que, para encobri-la e disfarçar a excitação nervosa, a falta de apetite e palidez externa, teve que recorrer a desculpas de moléstia; caiu realmente doente.

A incerteza em que se via, sem, pelo menos, saber se o seu afeto era ou não correspondido, dava-lhe acessos de violenta angústia, que a desoras tocava às raias da exasperação.

Uma noite, em que havia luar embaciado por ligeira bruma, tomou a sua aflição tal violência que ele decidiu fugir daquele local de sofrimentos e incertezas, logo na manhã seguinte.

Assente uma vez nesta resolução, ergueu-se do leito em que jazia prostrado pelo mais cruel desalento e, com algum custo, saiu para o terreiro, abrindo cautelosamente a porta da casa, a fim de não acordar os companheiros de quarto.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora