XXV. A viagem

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Às vezes sinto necessidade de morrer, como pessoas acordadas sentem necessidade de dormir.
Mme. du Deffand

 Encantador país! Teu aspecto, teus solitários bosques, ar puro e balsâmico, têm o poder de dissipar toda a sorte de tristezas, menos a da perda da esperança.
Carlota Smith



Cirino em pouco mais de uma hora, transpôs a distância da povoação ao rio. Também, na légua e quarto que até lá media, só há de ruim o trecho em que fica a floresta que borda as margens da majestosa corrente.

Nessa mata, trazem os troncos das árvores vestígio das grandes enchentes; o terreno é lodacento e enatado; centro de putrefação vegetal donde irradiam os miasmas que, por ocasião da retirada das águas, se formam em dias de calor abrasador e sufocante.

Abundam ali coqueiros de estípite curto e folhuda coroa chamados aucuris, a que rodeiam numerosas lagoinhas de água empoçada e coberta de limo.

Em nada é, pois, aprazível o aspecto, e a lembrança de que ali imperam as temidas sezões faz que todo o viajante apresse a travessia de tão tristonhas paragens.

Ouve-se a curta distância o ruído do rio que corre largo, claro e com rapidez.

Como duas verdes orlas refletem-se no espelhado da superfície as elevadas margens, a cujo sopé moitas de sarandis, curvadas pelo esforço das águas e num balancear contínuo, produzem doce marulho.

Causa-nos involuntário cismar a contemplação de grande massa líquida a rolar, a rolar mansamente, tangida por força oculta.

Bem como a ondulação incessante e monótona do oceano agita a alma, assim também aquele perpassar perene, quase silencioso, de uma corrente caudal, insensivelmente nos leva a meditar.

E quando o homem medita, torna-se triste.

Franca e espontânea é a alegria, como todo o fato repentino da natureza. A tristeza é uma vaga aspiração metafísica, uma elação inquieta e quase dolorosa acima da contingência material.

Ninguém se prepara para ficar alegre. A melancolia, pelo contrário, aos poucos é que chega como efeito de fenômenos psicológicos a encadear-se uns nos outros.

De que modo nasceu aquela enorme mole de água? Donde veio? Para onde vai? Que mistérios encerra em seu seio?

Largo tempo ficou Cirino a olhar para o rio. Em sua mente tumultuavam negros pensamentos.

Já se havia difundido o crepúsculo, e bandos folgazões de quero-queros saudavam os últimos raios do sol e despertavam os ecos em descomunal gritaria. De vez em quando, passava algum pato selvagem, batendo pesadamente as asas; sobre as águas, adejavam garças estirando e encolhendo o níveo colo e pombas, aos centos, cruzavam de margem a margem a buscar inquietas o pouso de querência.

Foi a luz gradativamente morrendo no céu, seguida de perto pelas sombras; e o rio tomou aspecto uniforme como se fora imensa lâmina de prata não brunida.

– Enfim, conheci o Manecão! – pensava Cirino. – E para esse é que reservam a minha gentil Inocência... Bonito homem para qualquer... para mim, para ela, horrendo monstro!... E como é forte!...

Digamo-lo, sem por isso amesquinhar o nosso herói, a ideia de força no rival acabrunhava-o.

– Se eu pudesse... esmagava-o!... E que ar sombrio e desconfiado!... Meu Deus, dai-me coragem... dai-me esperanças... Nossa Senhora da Abadia!... Nosso Senhor da Cana-Verde... valei-me!...

E o mancebo, diante daquela natureza acabrunhadora a quem tanto importava a paixão que lhe atanazava o peito, como o inseto a chilrar debaixo da folha de humilde erva, caiu de joelhos, orando com fervor ou, melhor, desfiando automaticamente as preces que sua mãe lhe havia, em pequeno, ensinado.

E o rio lá se ia sereno; e uma onça ao longe urrava, ou algum pássaro da noite soltava gritos de susto, esvoaçando às tontas.

Transpondo, na manhã seguinte, o Rio Paranaíba, pisou Cirino território de Minas Gerais.

Depois de légua e meia em mata semelhante à da margem direita, abrem-se campos dobrados, um tanto crestados do sol, de aspecto pouco variado, mas abundantíssimos em perdizes e codornas.

Tão preocupado levava o moço o espírito que, nem sequer uma só vez, imitou o pio daquelas aves; distração, a que aliás não se furta quem por lá viaja, tão instantes os motivos de instigação.

Foi com impaciência mais e mais crescente que percorreu as dezesseis léguas intermédias à fazenda do Pauda.

Ia com o coração cheio de apreensões e os olhos se lhe arrasavam de lágrimas, de cada vez que contemplava o melancólico buriti. Então, pelo pensamento voava à casa de Inocência. Também, ali junto ao córrego em cuja borda se dera a última entrevista, se erguia uma daquelas palmeiras, rainha dos sertões.

Que estaria fazendo a querida dos seus sonhos?

Que lhe aconteceria? E Manecão?! Já teria lá chegado?

Ao pensar nisto, aumentava-se-lhe a agitação e com vigor esporeava a cavalgadura.

Transformava-se para ele o caminho em dolorosa via, que numa vertiginosa carreira quisera vencer, mas que era preciso ir tragando pouso a pouso, ponto a ponto.

A majestosa impassibilidade da natureza exasperava-o.

Quando o homem sofre deveras, deseja nos raptos do alucinado orgulho, ver tudo derrocado pela fúria dos temporais, em harmonia com a tempestade que lhe vai no íntimo.

– Meu Deus! – murmurava Cirino –, tudo quanto me rodeia está tão alegre e é tão belo! Com tanta leveza voam os pássaros: as flores são tão mimosas; os ribeirões tão claros... tudo convida ao descanso... só eu a padecer! Antes a morte... Quem me dera arrancar do coração este peso! Esta certeza de uma desgraça imensa! Que é afinal o amor?... Daqui a anos talvez nem me lembre mais da pobre Inocência... Estarei me atormentando à toa... Oh não! Essa menina é a minha vida! É o meu sangue... o meu farol para os céus... Quem ma rouba mata-me de uma vez. Venha a morte... fique ela para chorar por mim... um dia contará como um homem soube amar!...

Levantara Cirino a voz. De repente, deu um grande grito, como que o sufocava:

– Inocência!... Inocência!

E as sonoridades da solidão, dóceis a qualquer ruído, repetiram aquele adorado nome, como repetiam o uivo selvático da suçuarana, a nota plangente do sabiá ou a martelada metálica da araponga.

Como tudo, afinal, tem termo, alcançou Cirino, no quarto dia, a casa de Antônio Cesário. Acolheu-o este com toda a amabilidade e franqueza.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora