XXVI. Recepção cordial

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Assinalemos este dia entre os mais felizes; não se poupem ânforas; e, como Sálios, descanso não demos aos nossos pés.
Horácio, Ode XXVI



Em breve chegara Manecão à casa do futuro sogro.

Não é grande a distância de Sant'Ana até lá, e entretanto o animal brioso e descansado que montava o tropeiro viera sempre estimulado do férreo acicate.

Batia de impaciência o coração do capataz, e a lembrança da formosa noiva que o esperava, enchia-o de desconhecido alvoroço. Também, por vezes, fugia-lhe do rosto o toque habitual de severidade, e tênue sorriso afastando a custo os densos bigodes lhe pairava nos lábios.

Acolheu-o Pereira com verdadeira explosão de alegria.

– Viva! Viva! – exclamou de longe acenando com os braços – Seja bem-vindo neste rancho... Ora, até que afinal!... Faltam rojões para festejar a sua chegada... Que demora!... Pensei que não topava mais com o caminho da casa... Nocência vai pular de contente...

Enquanto o mineiro enfiava estas palavras quase em gritos, apeou-se o sertanista que, de chapéu na mão, veio pedir-lhe a bênção.

– Deus o faça um santo – disse Pereira abençoando-o com fervor. – Você não queria chegar...

– Como vai a dona? – perguntou Manecão.

– Agora, muito bem. Teve sezões, mas já está de todo boa...

– E lembrou-se de mim?

– Olhe, que enjoado... Pois se ele enfeitiça a gente... Eu mesmo só pensava em você... Quando estará por cá aquele marreco? – dizia eu comigo mesmo... – e botava uns olhos compridos por essa estrada afora... quanto mais, mulher! Isto é um não acabar nunca de saudades. Mas, observou ele, estamos a bater língua e não o faço entrar... Agorinha mesmo, Nocência foi para o córrego... Desencilhe o pingo e deixe-o por aí...

Fez Manecão o que disse Pereira. Tirou os arreios, não de súbito, mas com cautela e lentidão para que o animal, encalmado como estava, não ficasse airado; deixou sobre o lombo a manta e, apanhando um sabugo de milho, esfregou devagar a anca e o pescoço.

Depois de dar termo àqueles cuidados, penetrou na casa fazendo soar ruidosamente as esporas, que pelas dimensões desproporcionadas o obrigavam a caminhar firmado nos dedos do pé e com a planta levantada.

O mineiro não cabia em si de contente.

– Então, está tudo arranjado? – perguntou alegremente.

– Tudo. Os papéis já foram tirados... Tive que ir até Uberaba, e foi o que me atrasou... Quando mecê queira... botamo-nos de partida para a Senhora Sant'Ana... Amanhã cá chegam os cavalos que comprei... Está falado o Lata... o vigário avisado; só... falta o dia...

– Nestes casos, quanto mais depressa melhor... Não acha?

– Certo que sim...

– Então, se quiser, daqui a dois domingos...

– Como queira... Eu, cá por mim... Bem sabe, isto de casórios, o que custa é... tomar resolução... depois... deve-se pegar na carreira... A rapariga esta pronta?...

– Não sei... há de estar... Vejo-a sempre cosendo... Quero ficar bem certo do dia, porque mando chamar a gente do Roberto... Afinal, é preciso matar a porcada e mandar buscar restilo. Quando se casa uma filha e... filha única, as algibeiras devem ficar veleiras. Já estão todos combinados... é só dar o sinal... Tudo se arma logo... Aqui, em frente da casa, faz-se um grande rancho... A latada para a janta há de ser no oitão direito... Já encomendei de Sant'Ana alguns rojões, e o mestre Trabuco prometeu-me uns que deitam lágrimas... Depois, tiros de bacamarte e ronqueiras hão de troar...

– Eu – interrompeu Manecão – mandei com a sua licença vir da cidade duas dúzias de garrafas de vinho da casa do major...

– Olaré! Você meteu-se em gastos!... Duas dúzias de garrafas de vinho?

– Nhor-sim...

– Pois essas, meu caro, hão de ser reguladinhas da silva... Para o vigário... para o major... o coletor... o professor... Enfim, gente de alguma representação, porque com ela conto, sem falar na arraia-miúda. Isto há de haver um despotismo. Quero que, dez dias antes da fonçonata venha a comadre do Ricardo com o seu povaréu para prepararem sequilhos, tarecos, broas, biscoitos de polvilho e brevidades. Haverá regalo de chicolate todas as manhãs... Você verá que desta festa falarão... E o sapateado à noite? Os descantes?... Talvez se possa arranjar um cururu valente...

– Mas – perguntou Manecão –, qu'é de sua filha? – Riu-se Pereira.

– Maganão! Não pensa noutra coisa, hein? Também fui ansim... cada qual tem o seu tempo... Isto é regra de Nosso Senhor Jesus Cristo.

E, saindo para o terreiro, gritou com força, fazendo das mãos buzina:

– Nocência!... Nocência!...

Não teve resposta.

– Coitadinha da pequena – disse ele –, há de saltar que nem veadinha, quando voltar do rio.

E acrescentou:

– Já que ela não vem... entremos. Você é de casa: tome por cá e chegue até o meu quarto... Rede e peles macias não faltam.

Ao dizer estas palavras, Pereira bateu amigavelmente no ombro de Manecão e fê-lo seguir para o lanço do fundo da casa.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora