XXIV. A vila de Sant'Ana

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Debaixo do céu há uma coisa que nunca se viu: é uma cidade pequena sem falatórios, mentiras e bisbilhotices.
Lavergne



Nesse mesmo dia, montou Cirino a cavalo e despediu-se de Pereira por uma semana ou pouco mais, dando por motivo de tão inesperada viagem, não só a necessidade de visitar alguns doentes mais afastados, senão também procurar, quer na vila, quer mesmo nos campos da província de Minas Gerais, uns remédios e símplices que lhe iam faltando.

– Daqui a um terno de dias estarei de volta – disse ao partir.

Desde a casa de Pereira até ao Albino Lata é tão ensombrada e agradável a estrada, que essas três léguas lhe foram muito fáceis de vencer.

Ali, porém, começam campos dobrados e soalheiros que, num estirão de quatro léguas, até a Vila de Sant'Ana tornam penosa a viagem, sobretudo quando são percorridos sob os ardentes raios do sol do meio-dia.

Exaltam-se e irritam-se os incômodos do espírito, no momento em que o físico começa a sofrer.

Quando Cirino passou por aquelas campinas desabrigadas, abrasado de calor, desanimou completamente do êxito da empresa a que se atirara. Tanta esperança o alvoroçara quando ia seguindo a vereda encoberta e amena, quanto desalento sentia agora; e, descoroçoado, deixava que o animal o fosse levando a passo vagaroso e como que identificado com a disposição de ânimo do cavaleiro.

– Que vou eu fazer? – pensava quase alto... – Como encetar aquela conversa?

Tamanha era a dúvida que o salteava que chegou quase a blasfemar contra a amada do seu coração.

– Maldita a hora em que vi aquela mulher... Seguia eu sossegado o meu rumo... botaram-me a perder os seus olhos!...

Depois, exclamou contrito:

– Perdão, Inocência! Perdão, meu anjo! Estou a amaldiçoar a hora da minha felicidade... Eu, que sou homem, posso fugir... deixar-te... mas tu, amarrada à casa... Infeliz, fui o culpado!...

E, engolfado em dolorosa cogitação, alcançou a Vila de Sant'Ana do Paranaíba.

De longe é sumamente pitoresco o primeiro aspecto da povoação.

Ponto terminal do sertão de Mato Grosso, assenta no abaulado dorso de um outeirozinho. O que lhe dá, porém, encanto particular para quem a vê de fora, é o extenso laranjal, coroado anualmente de milhares de áureos pomos, em cuja folhagem verde-escura se encravam as casas e ressalta a cruz da modesta igreja matriz.

Transpondo límpido regato e vencida pedregosa ladeira com casinholas de sapé à direita e à esquerda, chega-se à rua principal, que tem por mais grandioso edifício espaçosa casa de sobrado, de construção antiquada. Ornamenta-a uma varanda de ferro e um telhado que se adianta para a rua, como a querer abrigá-la em sua totalidade dos ardores do sol.

É aí que mora o Major Martinho de Melo Taques, baixote, rechonchudo, corado.

Na sua loja de fazendas, ao rés do chão, reúne-se a melhor gente da localidade, para ouvi-lo dissertar sobre política, ou narrar a guerra dos farrapos no Rio Grande do Sul e a vida que se leva na corte do Rio de Janeiro, onde estivera pelos anos de 1838 a 1839.

De vez em quando, naquela silenciosa rua em que tão bem se estampa o tipo melancólico de uma povoação acanhada e em decadência, aparece uma ou outra tropa carregada, que levanta nuvens de pó vermelho e atrai às janelas rostos macilentos de mulheres, ou à porta crianças pálidas das febres do Rio Paranaíba e barrigudas de comerem terra.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora