VI. Inocência

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Nesta donzela é que se acham juntas a minha vida e a minha morte.
 
Henoch, O livro da amizade

 Jamais vira coisa tão perfeita como o seu rosto pálido. Os olhos franjados de sedosos cílios muito espessos e o seu ar meigo e doentio.
 George Sand, Os mestres gaiteiros

 Tudo, em Fenela, realçava a ideia de uma miniatura. Além do mais havia em sua fisionomia e, sobretudo, no olhar extraordinária prontidão, fogo e atilamento.
 Walter Scott, Peveril do Pico 



Depois das explicações dadas ao seu hóspede, sentiu-se o mineiro mais despreocupado.

– Então – disse ele –, se quiser, vamos já ver a nossa doentinha.

– Com muito gosto – concordou Cirino.

E saindo da sala, acompanhou Pereira, que o fez passar por duas cercas e rodear a casa toda, antes de tomar a porta do fundo, fronteira a magnífico laranjal, naquela ocasião todo pontuado das brancas e olorosas flores.

– Neste lugar – disse o mineiro apontando para o pomar –, todos os dias se juntam tamanhos bandos de graúnas, que é um barulho dos meus pecados. Nocência gosta muito disso e vem sempre coser debaixo do arvoredo. É uma menina esquisita...

Parando no limiar da porta, continuou com expansão:

– Nem o senhor imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó.

...Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que ideia!... Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto. E se o senhor visse os modos que tem com os bichinhos?!... Parece que está falando com eles e que os entende... Uma bicharia, em chegando ao pé de Nocência, fica mansa que nem ovelhinha parida de fresco... Se fosse agora a contar-lhe histórias dessa rapariga, seria um não acabar nunca... Entremos, que é melhor...

Quando Cirino penetrou no quarto da filha do mineiro, era quase noite, de maneira que, no primeiro olhar que atirou ao redor de si, só pode lobrigar, além de diversos trastes de formas antiquadas, uma dessas camas, muito em uso no interior; altas e largas, feitas de tiras de couro engradadas. Estava encostada a um canto, e nela havia uma pessoa deitada.

Mandara Pereira acender uma vela de sebo. Vinda a luz, aproximaram-se ambos do leito da enferma que, achegando ao corpo e puxando para debaixo do queixo uma coberta de algodão de Minas, se encolheu toda, e voltou-se para os que entravam.

– Está aqui o doutor – disse-lhe Pereira –, que vem curar-te de vez.

– Boas-noites, dona – saudou Cirino.

Tímida voz murmurou uma resposta, ao passo que o jovem, no seu papel de médico, se sentava num escabelo junto à cama e tomava o pulso à doente.

Caía, então, luz de chapa sobre ela, iluminando-lhe o rosto, parte do colo e da cabeça, coberta por um lenço vermelho atado por trás da nuca.

Apesar de bastante descorada e um tanto magra, era Inocência de beleza deslumbrante.

Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade, realçada pela meiguice do olhar sereno que, a custo, parecia coar por entre os cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos a ponto de projetarem sombras nas mimosas faces.

Inocência (1872)Onde histórias criam vida. Descubra agora