Dores do passado

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Com a floração da nova estação, dias não tão curtos como antes e aquela brisa agradável, já é possível se aventurar pelos campos verdes de Glasgow. A primavera se avizinha e enfim dá claros indícios de que realmente veio para ficar.

Rosalie e Christopher estão no jardim dos fundos, bisbilhotando o serviço de Gavin, que contente capina um dos canteiros de rosas vermelhas, enquanto explica para os dois qual procedimento devem ter com as flores recém chegadas.

Mas nem sempre aconteceu desse jeito.

Assim que os dois começaram a desbravar os maiores quintais da vizinhança, sem o conhecimento de Francis, Catherine ou Isobel, o nível das travessuras acabou perpassando os muros. As brincadeiras, que compreendiam em fugir de Cassie e Finn, esconder-se no alto das árvores, encontrar pedras diferentes ou novas espécies de insetos já havia rendido alguns castigos com duração bastante longa. Afinal, quebrar vidraças, roubar flores e esconder roupas dos varais alheios não podiam ser consideradas tarefas de crianças bem educadas e vigiadas pelos familiares.

Por mais que tentem se esconder nas invasões aos quintais alheios, os meninos são vigiados, sem saber, por uma senhora chamada Coira Sinclair. A mulher, simpática na vizinhança, possui duas netas na qual é responsável, uma delas é Justine, já a outra, mais jovem, de nome Jessie, estuda no colégio da Avenida Central e algumas vezes foge para encontrar as amigas na praça, mesmo com as constantes repressões da avó.

Com os cabelos brancos e uma bengala um tanto imponente, apenas para auxiliar o joelho da perna esquerda, Coira é referência em sabedoria e fazia parte do grupo liderado pela mãe de Francis, enquanto ainda morava em Edimburg.

Uma batida de porta insistente é ouvida do lado de dentro, talvez fosse Rosalie retornando para casa. Tão cedo assim? Não mesmo, pensou ele, que de imediato dispensa a presença de Gavin e vai até a entrada da casa recepcionar quem quer que esteja batendo de forma tão rápida.

— Dona Coira. Bom dia!

— Francis, querido, como vai?

— Bem, e a senhora?

— Ah, estou ótima. Um pouco velha para sair nesse restante de frio, mas eu precisava dar uma espairecida.

— E ao que devo a presença da senhora tão cedo?

— A primeira vez que sai para pegar um ar, depois de uma temporada dentro de minha casa, afinal o frio é devastador, me deparei com aquela doce menina de cabelos esvoaçantes correndo bem em frente à minha janela. Estava vestindo um vestidinho muito lindo e colorido, com o cabelinho puxado para trás em um laço de fita grande, muito bonitinha, mas ela estava arrancando as minhas flores, Francis. — Com uma batida da bengala no chão, ele olha rapidamente para conferir se os pés seguiam intactos.

— Dona Coira, peço desculpas à senhora, sei que Rosalie não faria uma coisa dessas e...

— Mas fez, meu filho, ela fez. Arrancou e guardou em uma bolsinha de pano que eu mesma vi, apesar da minha dificuldade em enxergar de longe.

— Bom, então não terei como me desculpar com a senhora e sim pedir que Rosalie faça isso, afinal ela cometeu um erro. Agora, me informe de algo, por favor, a senhora viu se minha filha estava acompanhada de mais alguém?

— Claro que sim, ela só anda com aqueles amiguinhos dela. Eu sei disso, porque escuto eles gritando em frente à janela da minha sala. Mas hoje não estava a menininha Cassie. Estava o filho da Joan e também o sobrinho de Isobel. Como é o nome dele mesmo... Muito "maliducado"...

— Christopher, o nome do menino é Christopher.

— Esse mesmo. Garoto atrevido. Já me roubou bolachas que eu havia colocado para esfriar na janela. Eu mesma vi! Ele pensa que não? Para ser bem sincera, não sei nem se pensa, essa é a verdade. Mas ele estava lá, me perturbando, logo eu, uma senhora indefesa e...

— Dona Coira, me desculpe interrompê-la, mas conheço a senhora desde criança, não precisamos de meios termos. — Diz, enquanto esconde dentro de si o deboche pela velha conhecida que ele bem sabia que não era exatamente tão frágil assim.

— Então você sabe bem o que Beth pensaria ao ver a neta fazendo algo assim. Meu filho, escute esta velha aqui e dê um jeito naquela menininha tão linda, antes que seja tarde demais e ela fique igual minha neta Jessie.

— Vou chamar minha filha. Ela está na rua, mas sei que consigo encontrá-la.

— Não, não, Francis, não precisa. Já estamos conversados. Estou de saída, pois logo mais o padre realizará o sermão e eu quero estar presente, afinal hoje é um dia importante em nossa cidade.

— Ah, sim, claro. O sermão de sábado pela manhã. Aquele em que...

— Aquele o quê? — Para evitar conflitos com a velha conhecida, ele prefere manter para si as críticas ao sermão apelidado de: o sermão dos fofoqueiros.

— Nada, Dona Coira. Peço desculpas pela atitude impensada de minha filha, sei que não deve ter feito por mal, mas é que ela ama flores. E agradeço sua preocupação com ela, pois sei que é genuína — Tentou contornar.

— Sei disso, meu filho. Sei bem disso. Passar bem.

Ao retornar à cozinha, Francis depara-se com o par de olhos curiosos de Rosalie. A menina escondia um certo sorriso na expressão de seriedade em que tentava apresentar ao pai. Sabia que a filha havia escutado a conversa, por isso conduziu o diálogo a partir do que ela já bem sabia do que se tratava.

— Catherine, poderia por favor me deixar a sós com minha filha?

— Claro, senhor. Com licença. — Com um aceno de cabeça, ela concede o espaço para Francis, deixando-o com a menina para que pudesse conversar com ela sobre o ocorrido que Catherine já tinha ciência, afinal Rosalie havia confessado um dia antes.

— Não adianta me olhar desse jeito, pois sua tentativa não vai funcionar.

— Não fiz por mal, papai. Queria colher algumas flores e como dona Coira possui muitas, mas muitas mesmo, eu resolvi trazer para enfeitar os vasinhos do corredor dos nossos quartos. Ficaram lindas, não acha? — Perguntou, enquanto mentia involuntariamente para si mesma, fingindo apresentar um entusiasmo que não era verdadeiro.

— Mas você sabe que isso está errado, não sabe? Você não deveria arrancar as flores do jardim alheio, Fran. Ainda mais sem o consentimento da dona Coira. Você sabe que ela não gosta que mexam nas flores dela, por que você fez isso, então? E essa não é a primeira vez que fico sabendo disso, noutras Justine conseguiu intervir positivamente para você, mas essa não é uma atitude correta da sua parte. — Rosalie suspira profundamente e baixa a cabeça, fitando diretamente os pés, na tentativa de reduzir a correção que estava recebendo do pai.

— Mas eram as flores que a mamãe gostava. Desculpa. Eu nunca mais farei isso. — Afirmou ela, com os olhos marejados.

Sempre que se aproximava a data do aniversário de Marie, a menina criava novas formas de relembrar aquele dia tão especial — mais para a menina do que à mãe, que não fazia questão de comemorar a data enquanto estava viva.

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