Lembrete

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Os dias que sucederam o acontecimento com Rosalie haviam sido extremamente complicados. Os boatos logo tomaram conta da cidade, mesmo com a insistência de Francis em tentar conter qualquer burburinho que possa chegar aos ouvidos da família, porque nenhum deles queria precisar explicar sobre o ocorrido.

Rosalie passou toda a última semana com alterações entre melancolia e exacerbação. Durante a noite, acordou diversas vezes de forma súbita e chamou pelo pai, que prontamente correu até o quarto da menina na difícil tentativa de acalmá-la para que pudesse cair no sono novamente.

Nos primeiros dias, a aflição vinha do quarto dela. Já no terceiro, quarto e quinto dia, por uma escolha de Francis, a menina foi dormir junto dele. Depois de uma conversa com Gavin, Justine e Catherine, ele decidiu que seria mais fácil mantê-la por perto, porque assim conseguiria acalmar a criança. Em todas as vezes que acordou, precisava de um lenço para ajudar com o suor, que deixava o rosto completamente molhado. Com paciência, sempre tentou explicar que o medo deixaria de existir, mas ainda assim ela seguia entorpecida pela angústia e o pavor, que chegavam acompanhados de uma única pergunta: "Por que, papai?"

No sétimo dia, a menina acordou apenas uma vez durante a noite. Na manhã seguinte, Francis compartilhou a informação com os três amigos, a quem sempre recorre para buscar auxílio, pedir opiniões e informar do comportamento noturno da filha. Mesmo que de certa forma aliviado, ainda existe algo que o preocupa: Rosalie não havia falado sobre o ocorrido em nenhum momento.

Sem insistência, nenhum tipo de comentário indutor ou qualquer conversa que pudesse fazer com que rememorasse a lembrança, a criança passou os últimos dias brincando e estudado. Cristóvão tratou de trazer leituras diferentes e que trouxessem humor. Gavin chamou-a algumas vezes no jardim para olhar as flores e Justine preparou alguns biscoitos com creme. Catherine carregou Lea e ficou responsável por manter a menina envolvida a todo o tempo, enquanto Francis não está junto para fazer o mesmo. Contudo, sempre que o sol se punha, as dúvidas começam a surgir e é possível perceber um certo desespero no olhar.

Naquela noite Rosalie dormiu pouco depois das nove, o que permitiu que Francis soltasse a mão dela, que segurava firme a dele, e acomodasse a cabeça da filha sobre o travesseiro e não mais sobre o braço, tal qual estava. Precisava pegar um pouco de ar, por mais gelado que pudesse estar.

Deixando o quarto para trás e a luz de cabeceira acesa, ele calçou o chinelo de lã e couro e colocou o roupão por cima do pijama preto de seda. Com a porta entreaberta, ele saiu devagar e foi até a janela do corredor, pois não quer fazer nenhum barulho que possa acordar a menina. Mesmo que não vá enxergar nada àquela hora da noite, necessita respirar o ar gelado para desafogar os sentimentos da filha, que a cada noite carregava mais e mais consigo, como se os tirasse dela e guardasse dentro do peito, unicamente para vê-la bem.

Aquele ar é renovador. Muitas vezes foi até ali. É o ar que enche os pulmões que o faz sentir-se bem. Esteve naquela mesma janela em muitos dos dias em que Marie passou distante. A visão poucas vezes era clara o suficiente, mas o breu sempre permitia que enxergasse alguns poucos vagalumes sobre as plantas do jardim. Por mais difícil que fosse relembrar disso, ainda é reconfortante ficar ali. Aquele misto entre a dor e o desabafo silencioso, na entrega da angústia ao escuro, como se ela fosse uma velha amiga.

Não muito tempo depois, escutou um barulho vindo da cozinha e decidiu ir até o local para verificar mais de perto o que está acontecendo. Devagar se locomoveu, até que encontrou Catherine aquecendo água. De roupão e cabelos ondulados soltos, sem qualquer presilha ou amarra, tiara ou laço pendurado na ponta de trança, ele permitiu-se observá-la por alguns instantes até finalmente racionalizar a ação e enfim adentrar o ambiente.

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