Angústia

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Como de costume, Francis adentra a residência e retira as botinas logo na sala ao lado da porta, deixando-as arrumadas para que possa sair na manhã seguinte. Aquela sequência é realizada todos os dias de uma forma bastante protocolar, porque preza pela organização e também porque prefere manter as próprias coisas dispostas com afinco.

Após deixar as botas ao lado de um banco baixo, ele cuidadosamente guarda a espada, que é pendurada junto do cinto dentro do armário. Com ainda mais atenção, guarda a arma, que é cautelosamente escondida em uma caixa num fundo falso, afinal não é possível prever ou imaginar absolutamente nada.

Bastante adiantado, retornou para casa mais cedo que o habitual e encontrou a casa tão tranquila que se sentiu como nos dias em que nenhum dos outros estava em casa. Pouco havia se passado das sete e trinta, mas já estava escuro e o vento uivava na rua. As luzes do salão de jantar estavam apagadas, bem como as dos outros cômodos. Por um instante achou que tudo estivesse bem, até que se deu conta de que Gavin não assoviava na cozinha e que até mesmo o cuco do relógio de parede estava em silêncio. Foi então que se preocupou. O que teria acontecido?

— Gavin! Rosalie!

Enquanto andou em passos largos na direção da cozinha, encontrou Gavin interrompendo-o na ponta do corredor. Tentou esconder o rosto e não encarar o patrão, porque não consegue olhar nos olhos dele. Com os braços cruzados na frente do corpo e uma expressão não tão agradável, que não demonstra muito além de insatisfação, permaneceu encarando os pés.

— Onde estão todos? — Gavin recua ao responder, mas é urgente explicar o que havia ocorrido com Rosalie naquele fim de tarde. — Gavin? O que está acontecendo?

Receoso em encontrar os olhos do patrão, ele finalmente virou-se rapidamente. Não conseguiu que as palavras saíssem. Francis logo captou que o velho amigo havia chorado e que tentava engolir o que quer que fosse que estivesse escondendo ali.

— Senhor, hoje, mais cedo, a menina sofreu... — Ele não consegue terminar a frase e logo torno a chorar.

— O que foi, Gavin? Onde está minha filha?

— Senhor, a menina... — Disse, mas logo voltou a se engasgar com as palavras.

— Fale logo, homem. O que está acontecendo?

— Ian atacou a menina.


Atacou.

Atacou a menina.

Ian.

Francis perdeu-se ali.


Como se tivesse caído dentro de um fosso, quase engolido pela água que insiste em alcançar o nariz, sufocando-o rapidamente com cada batida do coração, deixou-se entregar brevemente. As nuances se confundiram com os movimentos rápidos de um redemoinho extremamente veloz que empurra a água com ainda mais força sobre as narinas, tentando afogá-lo em meio a dor da notícia. Ficou perdido.

Havia mesmo escutado bem? Ou era uma brincadeira? Mas por que Gavin brincaria com algo assim? Por qual motivo chorou? Estaria doente? Será a velhice acometendo-o com transtornos mentais? As luzes estão todas apagadas. Onde teriam ido Catherine e Justine? Por que ninguém o avisou? Ian atacou Rosalie? Ian? Quando? Por quê?

— Fran. — Foi o que conseguiu dizer. Ficou tão confuso e aturdido, que por alguns instantes quase se perdeu na própria consciência. Tentou encontrar uma resposta nos olhos de Gavin, mas não a encontrou. — Como? — Perguntou.

— Ele tentou... Rasgou o vestido... — Foi o máximo que conseguiu explicar ao patrão.

— O quê? — Tornou a perguntar. Já não sabia mais se o que estava ouvindo era verdade ou a consciência cansada brincando com ele por, novamente, ter ficado tanto tempo distante da família. Culpou-se rapidamente por isso. Esboçou um sorriso desordeiro, perdido. Está com medo de ouvir. Pegou a mão de Gavin para si e permaneceu olhando nos olhos dele, como se uma resposta positiva fosse sair dali.

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