Um dia depois

68 26 16
                                    


Eu já deveria estar dormindo, o efeito do clonazepam já está me fazendo viajar, mas acho que a minha mente ainda está ligada em algumas coisas, tais como o ventilador que a minha mãe me deu e que eu quase nunca ligo, a música do Raul Seixas tocando de fundo enquanto divido a tela do celular entre o YouTube e o bloco de notas e o relógio parado no meu pulso. Falando em relógio parado eu me lembrei que essa semana não bebi, ou seja, não tive nada que fizesse minha cabeça girar, mas por algum motivo hoje eu quis ligar o ventilador, e ele parece ser a única coisa girando dentro desse quarto.

Eu podia ser egoísta e dormir, perder a inspiração que veio na minha direção enquanto eu me distraia com coisas inúteis.
Só que ai lembrei do ventilador girando e junto com isso lembrei que meu pai gostava de Raul Seixas. Por isso não fui egoísta, porque o meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar.

Um dia depois de um dos piores dias da minha vida eu resolvo ligar esse ventilador pra sentir o vento bater no meu rosto enquanto lembro dela, e a música fez com que eu de alguma forma pudesse juntar os dois aqui do meu lado pra que eu não ficasse tão sozinho. Foi como ouvir Deus falar: podem ir hoje, vão lá e durmam com ele. Sinto como se estivesse dividindo o fone de ouvido com meu pai enquanto ele sorri pra mim e diz: "esse é o meu garoto, ouvindo as mesmas músicas que eu." Enquanto isso vejo o cabelo da minha mãe balançar com o vento.

Meu pai me pergunta o que eu quero ser quando crescer, e eu respondo: alguma coisa importante, um cara muito brilhante.
Ele sorri e diz que perguntas não valem nada, que é sempre a mesma jogada, um emprego e uma namorada, e logo em seguida diz que é melhor uma esposa ao invés de uma amante - minha mãe acena com a cabeça concordando, ela passa a mão no meu cabelo com um olhar triste, como se estivesse prestes a se desculpar. O tempo parece parado, igual o relógio no meu pulso.

Nesse momento digo a eles que eu ando meio problemático mas que o problema nunca foi o ato de lidar com tanta gente e sim o fato dessa minha perda de afeto em que sozinho quase sempre eu sou escravo da minha mente. Eles parecem não entender muito bem o que eu digo, mas logo em seguida completo dizendo que uns amigos sairam do meu lado, alegando que o meu ego me deixou cego de vez, minha mãe veio falando que sempre me avisou e eu disse a ela que falei pra eles que o foda é cês achar que humildade é ter que se sentir culpado por fazer o que cês não fez. Ela arregalou os olhos incrédula com o que tinha acabado de ouvir. Meu pai seguia calmo, só colocou a mão sobre o meu ombro e disse que me amava, que não queria ter me deixado, só não aguentou a pressão, e eu entendi ele. Mesmo que com lágrimas no rosto, pude sentir a presença mas não pude abraçá-los já que somos de planos diferentes.

Meu pai segue sendo o mesmo maluco beleza, e minha mãe a pureza em pessoa de sempre. Tô feliz que hoje não vou dormir sozinho, tô feliz porque converso com seres de outro plano e quanto mais eu vejo eles mais odeio o ser humano.

Os dois acham engraçado o fato da minha irmã descobrir sobre isso e falam que ela vai querer me internar se souber, mas de alguma forma sinto como se eles também estivessem olhando por ela, por todos nós.
Disse a eles que tinha tomado remédio pra dormir e que ontem eu não me aguentava de tanta saudade, e pude sentir que eles estavam felizes por estar aqui agora.
Peço pra que eles fiquem e meu pai diz
"Vou ficar com certeza, maluco beleza" nesse momento abro um sorriso largo na certeza de que não tô sozinho e que posso dormir em paz.

Minha mãe me faz um cafuné enquanto meu pai canta "Gita" e diz não se agita, só descansa, estaremos sempre com você, nós te amamos meu filho.

Escrevendo Em Busca De ÊxtaseOnde histórias criam vida. Descubra agora