Selene
Minha chave cai no chão três vezes antes de eu finalmente conseguir abrir a porta, com um pouco de força demais. Encontro meu pai sentado no sofá lendo o jornal, ele nem se meche. Talvez tenha percebido minha chegada, talvez não. Coloco a chave na mesa de vidro antes que alguém perceba que minhas mãos estão tremendo. Pego as sacolas da porta e coloco uma por uma para dentro. São mais de cinco. Eu sei exatamente o que eu comprei, eu só não sei por que eu comprei. E o pior nem chega a ser isso.
Subo para o meu quarto, demorando mais de cinco segundos em cada degrau, tentando evitar a verdade que uma hora ou outra acabará caindo bem na minha cara e eu não poderei mais fugir dela. Finalmente meus dedos tocam a maçaneta dourada e eu não tenho mais o que fazer se não abrir a porta e jogar as sacolas no chão. Sento-me juntos delas e começo a abri-las. Levanto assim que eu termino e verifico duas vezes se a porta está trancada antes de começar a chorar.
Chorar é um ato estúpido do corpo humano utilizado para demonstrar emoções exageradas, principalmente tristeza, alegria e dor para os de mesma espécie. Infelizmente, apesar de ser um ato odiado por mim é algo que vez ou outra eu não consigo evitar, já que, querendo ou não, sou humana. Esses são aqueles tipos de momentos em que você se pergunta onde você foi parar e o que você está fazendo com a sua própria vida. Devo dizer que o ataque de riso que toma conta do meu choro nessa hora é culpa da minha mania de achar as coisas tristes engraçadas. Uma mania estranha, que ninguém entende, mas a tristeza é uma coisa muito além do trágico. Chega a ser quase belo.
Parar de rir é difícil, porém é mais fácil do que parar de chorar. Principalmente quando você acaba de tirar das sacolas um par de brincos idênticos aos que você tem na gaveta. E o maior problema é quando você lembra que já tem dois pares desse mesmo brinco em outra gaveta, dois pares iguais e acabou de comprar o terceiro idêntico. Apesar disso, parte de mim está aliviada de apenas duas dessas sete coisas que eu comprei serem repetidas.
No começo eu não percebia que comprava a mesma coisa várias vezes, até ela sair do estoque da loja. Demorou quase quatro meses para eu notar o que estava acontecendo e foi isso que mais me assustou. Eu demorei quatro meses para notar. Primeiro eu achei que estava com problema de memória e saí correndo para fazer todos os exames possíveis para no fim descobrir que eu havia desenvolvido um transtorno de compras compulsivo. E se isso não era o suficiente ainda descobri que meu tipo de compulsão era diferente das outras pessoas. Meu cérebro tentava reproduzir certos momentos de felicidade de novo, comprando um vestido que eu gostei várias vezes seguidas. Às vezes eu quase posso sentir isso na música também, como se eu só conseguisse tocar a mesma música várias vezes porque ela me lembra alguma coisa importante e, dependendo, até eu conseguir mudar de música demoram horas ou até mesmo dias.
Pego o meu celular do chão e ligo a música no meu mais novo vício: a soundtrack do filme A Teoria de Tudo. O jeito como a melodia pula pelas cordas do violino e pelas teclas do piano lembram o modo como as estrelas brilham durante a noite, tão belas e inalcançáveis, iluminando a nós que somos tão absurdamente apenas humanos. Então finalmente arranjo coragem para me levantar e limpar o rímel borrado da cara, antes de descer para o jantar.
Eu me orgulho de dizer que é impossível saber que eu estava chorando a minutos atrás. Meus cabelos perfeitamente alinhados e minha maquiagem retocada e sem falhas convencem quase até a mim mesma, o que me faz dar um sorrisinho satisfeito para a minha família que já está sentada na mesa de jantar, se servindo de uma lasanha tão cheirosa que me faz sentar e estender meu prato em menos de dois segundos.
Eu como em silêncio, escutando meu pai perguntar à minha irmã como foi o dia dela na escola e ela responder contando cada detalhe das conversas com suas amiguinhas e professoras da escola. Depois ele pergunta o mesmo para a minha mãe e ela responde como foi o seu dia corrido no restaurante e como foi bom contratar um novo ajudante de limpeza. De repente se instala o silêncio na mesa, minha mãe encara meu pai esperando ele fazer a mesma pergunta para mim, porém ele não o faz.
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Selene
RandomUm passado amoroso traumatizante havia feito com que Selene passasse de filha perfeita para garota má. Com sua beleza de dar inveja em qualquer uma, sua maior diversão é destruir os casais perfeitos e gastar todo dinheiro de seu pai em saltos da Cha...